“Não se trata de ser simpático ou mesmo empático com o paciente, está para além disso; é uma capacidade que se desenvolve ao longo do tempo, a de ouvir para lá do que está a ser dito”
Entrevista e Fotos por Mariana Gonçalves
(E) Designou por Saúde Mental XXI o que faz neste consultório. Porque escolheu uma designação tão genérica?
(PD) Porque resume o meu percurso profissional. A psiquiatria, uma especialidade da Medicina, foi a minha porta de entrada para este universo que é o da saúde mental. Neste universo operam vários profissionais, de outras áreas que não a médica, com os quais me tenho articulado e continuo a articular, no dia a dia – enfermeiros e psicólogos, mas também outros, oriundos de áreas como a terapia ocupacional, a psicopedagogia, ou a psicomotricidade, entre outras. Sempre trabalhei no mesmo centro hospitalar e o meu serviço sempre se chamou Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental. A psiquiatria e a saúde mental são indissociáveis porque a Medicina é essencial à preservação da saúde. É, portanto, uma forma de realçar a minha identidade profissional.
(E) O que é exactamente a saúde mental?
(PD) Para responder a essa pergunta, vou recorrer à definição da OMS, pois não conseguiria ser mais precisa. É um estado de bem-estar, no qual o indivíduo realiza as suas capacidades próprias, pode manejar as dificuldades normais da vida, pode trabalhar de forma produtiva e frutuosa, e é capaz de prestar uma contribuição para a sua comunidade. Vou reforçar a definição da OMS com algumas palavras do Professor Doutor Caldas de Almeida, que se tornou director do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S. Francisco Xavier no início de 1994, quando comecei o Internato de Psiquiatria (formação médica específica) e onde ainda hoje trabalho (o serviço está agora integrado no Hospital de Egas Moniz): A ausência de doença mental contribui para a saúde mental, mas não assegura, por si só, uma boa saúde mental.
(E) Então e o que é a doença mental?
(PD) É importante realçar que a doença mental é uma entidade biopsicossocial, não exclusivamente biológica. Isso pressupõe que o médico não deve limitar-se a fazer diagnósticos - por mais nuclear que isso seja à sua identidade – e a tratar os doentes apenas com medicação. Quero acrescentar que a doença mental compromete a capacidade de realização, mas também de relação do indivíduo. Na verdade, outro médico, este mais famoso, Sigmund Freud, disse-o de outra forma: (ter saúde mental é) ser capaz de amar e de trabalhar. Gosto bastante desta definição, mais sintética e precisa.
(E) Acabou de citar um médico que não é deste tempo e, todavia, refere-se a Saúde Mental XXI. Trata-se de um constructo novo?
(PD) Não, na verdade não, ainda que Portugal tenha elaborado um plano com metas específicas para o início deste século (Programa Nacional para a Saúde Mental 2016-2020). Mas a psiquiatria tem uma longa história, enquanto especialidade autónoma, dentro da Medicina, e a profissão é anterior ao nascimento de todas as outras profissões que operam no sector. Por outro lado, ainda estamos no primeiro quartel do século XXI, por isso acredito que muito venha a mudar na prática clínica, ao longo dos próximos anos e não só fruto do desenvolvimento tecnológico a que se assiste em todas as áreas da Medicina. Inclusivamente, a epidemia actual modificou dramaticamente o dia a dia dos médicos, dos psicólogos e dos doentes, habituados à presença uns dos outros - a esmagadora maioria dos atendimentos deixou de ser realizada face a face, alternativa que antes era desprezada pela maior parte dos profissionais. É uma enorme mudança, e essa já é específica deste século!
(E) Então porque fala de Saúde Mental XXI, se tenciona operar no sector privado? O que tem para oferecer é diferente daquilo que os seus concorrentes oferecem? E se sim, em que medida?
(PD) O que tenho para oferecer é simultaneamente semelhante e específico. É verdade que todos os psiquiatras estão aptos a tratar as doenças mentais, desde as mais simples às mais graves. E que os psicólogos tratam uma fatia importante do sofrimento comum, correspondente a simples distress ou mesmo a sintomas de doença, mais frequentemente ansiosos e depressivos. Aí reside a semelhança. A minha especificidade reside no facto de ter mais de 25 anos de experiência na área da saúde mental, de estar no pleno das minhas capacidades técnicas e de ter trabalhado com diferentes tipos de pessoas, com vários graus de sofrimento, em diferentes contextos e localidades do País. Conheço a experiência de integrar equipas do SNS, agora tão valorizado..., mas também tenho mais de 20 anos de prática privada, quer em Lisboa quer na chamada província. Tenho tido a oportunidade de dar o meu contributo especializado em clínicas médicas generalistas, que têm uma porta aberta para a rua e a que recorrem adultos que têm dores de dentes, crianças com febre, adolescentes com acne e idosos que têm sequelas de AVC. Mas, durante seis anos, trabalhei maioritariamente com doentes muito graves, com psicoses. E tenho também a vivência, pela qual me sinto imensamente grata, de poder estar num ambiente íntimo, pensado ao detalhe por mim e no qual consigo desenvolver um trabalho ao qual imprimo o meu cunho pessoal. Esse ambiente é o deste consultório onde nos encontramos.
“A psiquiatria e a saúde mental são indissociáveis porque a Medicina é essencial à preservação da saúde”
(E) Refere-se então à sua experiência profissional, que já é longa...
(PD) Por um lado sim, por outro não. Não me refiro apenas a ela. Mais tempo dá-nos também mais amplitude; um olhar mais abrangente sobre o sofrimento humano e as diversas formas como ele se apresenta. Ao fim de tanto tempo e de vários milhares de pessoas, olhamos para uma que sofre de esquizofrenia e vemos mais semelhanças que diferenças em relação a uma outra que tenha, por exemplo, uma simples fobia. Não é só porque algumas manifestações são semelhantes, mas também me refiro ao facto de que, para além das alucinações que a primeira possa experimentar, existe uma pessoa que pode partilhar experiências de vida idênticas às da outra. Também se passa o seguinte - é que passamos a reconhecer muito dos doentes em nós, as fronteiras esbatem-se. Há um continuum entre a doença e a normalidade.
(E) Sim, mas em que medida o seu trabalho é diferente do dos seus colegas?
(PD) Acredito firmemente que as grandes diferenças se fazem de pequenas nuances. Há muitos aspectos da comunicação interpessoal que passam despercebidos mas que, se estivermos atentos, fornecem muito material para trabalhar, em conjunto com os doentes. Não se trata de ser simpático ou mesmo empático com o paciente, está para além disso; é uma capacidade que se desenvolve ao longo do tempo, a de ouvir para lá do que está a ser dito. Se apreendermos o que nos está a ser oferecido, temos múltiplas possibilidades de ajudar aquela pessoa. É um caminho partilhado e, mais do que isso, é construído de forma específica pelos intervenientes. Assim o cliente o queira...
(E) Parece referir-se a um ingrediente secreto. Isso existe?
(PD) Cada pessoa é um tesouro, muitas vezes bem fechado. O que mais gosto de fazer é apreender o que cada um esconde e porquê. A doença mental, mesmo a doença mental grave, como a esquizofrenia ou a doença bipolar, esconde coisas que estão impensadas, que se alimentam da sombra e que é preciso trazer à luz. E depois é ajudar a pessoa a caminhar pela vida, sem precisar de se esconder mais.
(E) Mas seguramente que não foi sempre bem sucedida!
(PD) Não, é verdade. Guardo muitas recordações de doentes que me foram muito queridos, mas que deixaram de ser acompanhados por mim, umas vezes porque não lhes restou alternativa outras porque assim escolheram. Mais ainda: o internamento dos meus doentes é por mim encarado como insucesso, na medida em que é durante os períodos de estabilidade que as pessoas conseguem fazer mudanças importantes nas suas vidas.
(E) Pode especificar um pouco melhor? Sem mencionar nomes...
(PD) Quando tenho oportunidade de seguir os pacientes por períodos de tempo mais ou menos longos, surgem habitualmente múltiplas oportunidades de crescimento para eles. Lembro-me de um paciente com doença mental crónica, que não trabalhava há anos e que nunca tinha conhecido uma mulher... voltou ao seu emprego, começou a conduzir e passou a ter uma vida sexual partilhada. Ocorrem-me vários casos de mulheres deprimidas que voltaram a trabalhar, depois de períodos muito longos de baixa. Guardo comigo a recordação de dois homens muito inteligentes que, infelizmente, interromperam cedo de mais o seu seguimento e que permanecem muito isolados, sem trabalho e com pouco amor nas suas vidas...
“A doença mental, mesmo a doença mental grave, como a esquizofrenia ou a doença bipolar, esconde coisas que estão impensadas, que se alimentam da sombra e que é preciso trazer à luz”
(E) Que pessoa ou pessoas influenciaram o seu trabalho?
(PD) Já aqui referi duas, muito diferentes entre si, aliás! Mas as minhas referências são muitas e não se limitam à psiquiatria, ou sequer à Medicina. Na psiquiatria tenho de mencionar outros colegas, uns porque me acolheram quando cheguei, outros porque me ensinaram muito do que hoje sei, outros ainda porque confiaram em mim e me permitiram crescer. Tenho de referir a minha tutora (orientadora de formação médica específica), a psiquiatra Elisabete Soares, que me acolheu na primeira equipa comunitária que integrei. No consultório tenho várias fotografias expostas, que foram tiradas por ela e que me acompanham há anos. No segundo grupo não posso deixar de mencionar o Dr. Rui Rocha Martins, um colega com quem passei inúmeras horas da minha vida, com o qual tive muitas discussões, clínicas e não só, na Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier, mas também com quem passei muito bons momentos. O meu psicanalista, o Dr. António Coimbra de Matos foi determinante para forjar a minha identidade psicoterapêutica e as minhas supervisoras, em particular a Dra. Isaura Neto, foram burilando comigo as minhas maiores arestas. Sem a confiança dos meus directores, no hospital, não teria tido oportunidade de assumir a coordenação de várias equipas de saúde mental: tenho de agradecer ao Dr. Álvaro de Carvalho, que me confiou a coordenação da equipa de Psiquiatria de Ligação, ao Professor Caldas de Almeida, que me convidou para coordenar a equipa comunitária da Parede e ao Dr. Luís Sardinha, que me deu a oportunidade de criar um hospital de dia de psiquiatria, onde trabalho hoje em dia.
(E) Falou de dois analistas portugueses seus contemporâneos. Em que medida a psicanálise influencia o seu trabalho?
(PD) A psicanálise é a raiz do meu trabalho; não se vê, mas dá-me o sustentáculo de que preciso para ser criativa. A grupanálise foi uma descoberta recente, dos últimos anos, mas igualmente apaixonante. É a base do trabalho que desenvolvo no hospital de dia, onde cuido de doentes muito complexos e difíceis.
“O internamento dos meus doentes é por mim encarado como insucesso, na medida em que é durante os períodos de estabilidade que as pessoas conseguem fazer mudanças importantes nas suas vidas”
(E) Pode ser criativa, numa área técnica, como a sua?
(PD) Sem dúvida que sim. Penso aliás que a mais valia que tenho, é precisamente a minha criatividade. É ela que me permite utilizar, de diferentes modos, todo o conhecimento e experiência que fui integrando ao longo dos anos.
(E) Referiu outras influências, dentro da Medicina...
(PD) Sim. Hipócrates, claro, uma vez que comitou os médicos com a pesada obrigação de serem gente moral e discreta, dedicada ao bem-estar dos seus pacientes (a citação é de John Hirst). Mas também vários médicos que foram simultaneamente escritores, e que me ensinaram muito acerca da nossa essência, daquilo que nos torna humanos, e que nos distingue dos outros primatas: Anton Tchekhov, o mais importante, mas também Arthur Schnitzler ou António Lobo Antunes.
(E) E fora da Medicina...?
(PD) Ai, aí são tantas, que o difícil é escolher! Não posso deixar de referir outros escritores, de que sou uma leitora fiel e que me ensinaram muito: Hermann Hesse, Flannery O’Conner, Henrik Ibsen, Mario Vargas Llosa, Tennessee Williams, Alice Munro, Philip Roth, são dos mais importantes. Esses não posso mesmo deixar de nomear. Mas depois há muitas outras influências culturais, que vão da música ao cinema, do teatro ao circo.
(E) E pode citar algumas, para que a possamos conhecer um pouco melhor?
(PD) Gosto de jazz (Ella Fitzgerald ou Dave Brubeck), mas também de música americana influenciada pela folk como Fleet Foxes ou Damien Jurado e também gosto muito de outras sonoridades, mais alternativas, que surgiram ou foram influenciadas pelos anos 1980. Bandas de música como The Chameleons, Nick Cave and the Bad Seeds, And Also the Trees ou Interpol. Destaco ainda o compositor Erik Satie, no vasto e, em grande parte, desconhecido para mim, continente da música clássica. Gosto muitíssimo das canções do Sérgio Godinho. E das músicas do Carlos Paredes. No cinema, gosto muito dos filmes de uma realizadora americana independente, a Sofia Coppola. Mas também de David Lynch. Já destaquei dois dramaturgos muito amados e, em relação ao circo, adoro Novo Circo! Pela enorme humildade, mas também porque nunca deixa de me surpreender. Aliás, como as pessoas. São também inesgotáveis...
(E) Como gostaria de terminar esta entrevista?
(PD) Com uma citação, já que me encaro como uma espécie de tradutora, não de línguas mas de pessoas, pessoas que têm doenças ou problemáticas complexas. Há uma crónica do Gonçalo M. Tavares, que foi publicada no Diário de Noticias há anos e que guardo com muito carinho no consultório, na qual ele diz o seguinte: Se falarmos de saúde mental não devemos esquecer o que a cabeça absorve. A cabeça que absorve boas palavras, palavras que fazem pensar, palavras que exigem trabalho de interpretação, que exigem esforço, movimento mental, a cabeça que absorve esse tipo de palavras terá melhor saúde, eis a evidência. Ele conclui essa crónica dizendo: Quando se faz algo que pode interferir na cabeça dos outros é interessante pensar nesse médico ideal, lúcido e sábio, provavelmente inexistente, que algures, no seu consultório, aconselha dietas intelectuais.