Sob céus violentos

mar-2022

Vivemos tempos conturbados.

Ainda a epidemia não nos largou e já a ameaça da seca e – nos últimos dias – o espectro da guerra povoam os nossos sonhos, sejam eles despertos ou inconscientes. Os três fatores irão contribuir para agravar a crise económica de que Portugal padece cronicamente, condicionando um agravamento das condições de vida dos portugueses nos próximos meses.

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Existe alguma semelhança entre o que se passa atualmente e o que aconteceu na Europa do século XIV, altura em que condições climatéricas desfavoráveis determinaram quebras na produção de alimentos e as epidemias e guerras que se lhe seguiram dizimaram a população europeia, que recuou para valores equivalentes aos de séculos anteriores.

Há quem pense que, no que diz respeito à guerra, devíamos ter aprendido com a História. Infelizmente, a guerra é inerente à condição humana. Tal afirmação tem por base o pensamento de Freud, para quem a guerra é a expressão do instinto de morte, da destrutividade consubstancial ao ser humano.

Data de 1932 uma troca de cartas entre Einstein e Freud, na qual o segundo responde à pergunta de Einstein: Existe alguma forma de liberar a Humanidade da ameaça da Guerra?

Diz Freud, na sua carta de resposta a Einstein: “Algumas pessoas estão inclinadas para profetizar que não será possível pôr fim à guerra até que a forma comunista de pensar tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo é, em todo o caso, muito remoto atualmente e, talvez só possa ser alcançado após as mais temíveis guerras civis. (...) Estaremos a efetuar um cálculo errado se ignorarmos a ideia de que a lei era originalmente força bruta e de que, até mesmo hoje, não pode subsistir sem o apoio da violência. (...)” Mais adiante Freud acrescenta: “De acordo com a nossa hipótese, os instintos humanos são apenas de dois tipos: existem aqueles que procuram preservar e unir – que denominamos “eróticos”, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra eros (...) – e aqueles que procuram destruir e matar e os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. (...) Nenhum destes dois instintos é menos essencial do que o outro (...)”

Podemos igualmente recorrer ao pensamento de Clausewitz que, no seu tratado Da Guerra (Vom Kriege), publicado 100 anos antes das referidas cartas, escreve que não é possível eliminar a guerra e evitá-la sempre, afirmando que a guerra é a continuação da política, mas por outros meios.1

Para Clausewitz a existência da guerra compreende-se na presença da maravilhosa trindade (wunderliche Dreifaltigkeit): força, paixão e razão. Três fatores em dialética, que poderão ser resumidos da seguinte forma: povo, forças armadas e Estado.

Já neste século, Felipe Pathé Duarte, afirma que a guerra faz parte de nós: A ideia de querer acabar com ela é, na melhor das hipóteses, ingénua.1

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Flannery O’Conner também falou da guerra, mas de outra forma: “Sabia que era feito da mesma matéria-prima que constitui loucos e fanáticos e que dera a volta ao seu destino quase como que por pura força de vontade. Mantinha-se recto sobre uma fronteira muito fina entre a loucura e o vazio, e quando chegasse a altura de perder o equilíbrio, tencionava balancear-se para o vazio e cair do lado da sua predilecção. Reconhecia que de muitos modos levava uma vida heroica.” 2

Para grande parte dos cidadãos comuns é possível, hoje, ainda que não evitar a guerra, exprimir descontentamento, dar apoio material, dar um qualquer contributo, por mais modesto que seja, para minimizar os efeitos da guerra. Todavia, para muitos daqueles que padecem de perturbações mentais, isso não é viável e o seu desconforto traduz-se num aumento do distress, do mal-estar que os incapacita. Dizia-me uma doente há dias: “Dra. estou em pânico autêntico só vejo e publico as notícias da guerra e não estou a conseguir gerir/lidar nada bem com isto. Tenho medo, não consigo dormir. Sinto-me assustada, em pânico.” Um outro paciente, que levou também um dos primeiros dias do conflito a ver as notícias da guerra na internet, acabou por fazer uma maciça ingestão de álcool, já durante a madrugada, de tal forma que, no dia seguinte à ressaca, não se lembrava de nada do que tinha dito ou feito.

A minha coragem está na minha cabeça, disse o personagem de Flannery O’Conner.

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Não podemos ignorar que o que se passa no Leste da Europa tem, e vai ter, impacto na nossa economia, em todos nós, e em particular na nossa saúde mental. Por isso, reforço o que disse Flannery O’Conner: a nossa coragem está na nossa cabeça. Tenhamos coragem!

1. Sigmund Freud e Albert Einstein - nota introdutória de Felipe Pathé Duarte. (2017) Porquê a guerra? Uma conversa entre dois génios. Cultura Editora.

2. Flannery O’Conner (2008). O Céu é dos violentos. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores.