Rir depois de morta1

set-2024

Morri quando percebi que nunca mais ia ver o Nero, mas claro que não tomei consciência disso na altura.

Já tinha morrido antes e não tinha aprendido. Ao longo da minha vida morri várias vezes, porque nunca compreendi o impacto que as coisas tinham em mim e continuei a agir como se nada se passasse. Claro que, passados meses – devo admitir que nunca precisei de anos para ter mudanças, ao contrário de outros – os conhecidos estranhavam o meu comportamento. Eram sempre eles que davam por isso, porque para mim aquela era a única forma lógica de me relacionar com eles: afinal, sempre se tinham mostrado enigmáticos e eu sempre suspeitara das suas verdadeiras intenções para comigo. Limitava-me a agir de forma coerente e as ações deles deixavam de me surpreender.

Eu morria quando as pessoas finalmente se revelavam (era comum estarem alinhadas umas com as outras e eu só perceber isso depois de morrer um pouco mais). Felizmente, elas nunca se apercebiam disso. Seria humilhante para mim.

Voltando ao Nero, não será demais dizer que ele também fazia parte do esquema: era por isso que se esquivava sempre a vir almoçar comigo e com as outras e também foi certamente por isso que nunca quis partilhar o seu número de telefone connosco. Por isso, no dia em que ele disse que se ia embora, eu soube que nunca mais voltaria e que nunca mais o veria. Mas, como já disse, nunca percebo o que se está realmente a passar quando as coisas estão a acontecer, por isso reagi de forma civilizada. Limitei-me a tentar dissuadi-lo, como as outras, mas no meu íntimo, sabia que ele não era sensível a esse tipo de argumentos. Éramos parecidos, eu e ele e outra pessoa menos doente teria antecipado o perigo de nos virmos a conhecer melhor e teria compreendido que o que nos distinguia seria precisamente o que nele me atrairia. O que eu também não sabia nessa época, era que ele era tão parecido comigo; quando pressentia o perigo de se ligar a alguém, saltava fora e nadava para bem longe desse barco. No nosso caso seria um transatlântico, uma embarcação capaz de aproximar dois continentes separados por um oceano inteiro.

Agora estou definitivamente morta. Já não consigo trabalhar e passo os meus dias entre a cama e a televisão, como um zombie. Vejo-me forçada a conviver com a impostora que se faz passar por minha mãe e a fazer apresentações regulares na esquadra. Está bem, está bem. Eu sei que ela é minha mãe e que não tenho de ir a uma verdadeira esquadra da Polícia, mas a parte das injeções mensais é mesmo real; se não as faço, acabo outra vez encarcerada no hospital. Foi o que aconteceu pouco tempo depois da última vez que estive com o Nero e, na verdade, voltou a acontecer nos anos seguintes, de forma que já estive tantas vezes internada desde que perdi o rasto dele, como as que estive no ano em que conheci deus.

Ele veio disfarçado de mulher, mais velha do que Jesus quando se juntou ao Pai e com uma profissão para ganhar a vida. Há que reconhecer que, nos dias de hoje, é difícil perceber quando é que nos cruzamos com ele – para mais quando se apresenta como ela. E também porque é apenas um aprendiz, e por isso ainda erra muitas vezes (refiro-me a deus, evidentemente).

Deus conseguiu que eu deixasse de acreditar nas vozes que ouvia quando não estava ninguém presente. Era um disparate, claro, mas naquela época eu acreditava mesmo que as ouvia a falarem e a rirem-se de mim e vivia aterrorizada dentro da minha própria casa. Com a ajuda de deus, acabei por admitir que fosse uma parte de mim, disfarçada de outros, a falar comigo mesma. Ao fim de um ano estava a trabalhar outra vez e, sem que me apercebesse, passado outro ano, já escolhia a cor do batom que ia usar quando estivesse novamente com o Nero.

Tive de ouvir o Nero falar da namorada, de como era viver com ela na mesma casa. Tive de o ver todo contente consigo mesmo. Eu intuía que ele não gostava assim tanto dela, mas sabia que estava convencido de que gostava, como antes eu estava mesmo convencida de que ouvia vozes, quando não havia ninguém para ouvir. Apercebi-me de que já tinha feito um caminho que ele ainda não tinha percorrido, quando o ouvi dizer que às vezes sentia coisas no corpo (porque isso também já me tinha acontecido). Infelizmente, éramos ambos seres demasiado incompletos. O que ele sentia, eu já não sentia e eu sabia de coisas de que ele nem suspeitava.

Deixei de estar com elas no dia em que o vi pela última vez (às vezes tenho saudades desse tempo), mas aposto que o Nero continua a encontrar-se regularmente com deus (sempre me irritou ser tão bem-comportado). É verdade que, se naquela altura eu soubesse o que ele sabia, não estaria hoje à mercê dos serviços de saúde que, como num regime totalitário, me mantêm permanentemente vigiada – ou acompanhada, como dizem (quem disse que eu queria outra vez companhia?) – por funcionários arregimentados do Governo, pagos para nos manterem a todos domados pelas injeções (no meu caso, completamente, já que vivo entre o sofá e a cama e a cama e o sofá). Naquela época, eu acreditava que os médicos que trabalhavam para o Estado eram mais honestos do que aqueles que queriam ganhar muito dinheiro nos seus consultórios. Para mim, esses não olhavam a meios para atingirem os seus fins. O Nero, claro, não embarcava nessa visão maniqueísta do mundo; talvez porque tivesse assistido de mais perto à queda do muro.

Aposto que o Nero continua a querer ganhar muito dinheiro e que tem outra namorada, mais nova do que ele (do que nós) e mais clara, mais clarividente do que eu, com quem ilumina a casa e espanta de lá os seus fantasmas.

Agora a minha vida é escura, os meus dias são todos cinzentos. Mentira. Não são todos iguais. Nos piores dias, instala-se-me na cabeça a ideia de que tenho alguma responsabilidade pelo estado a que cheguei (se não tivesse abandonado a medicação...). Essa dúvida corrói-me por instantes, até conseguir afastá-la, como a uma mosca incómoda. Nos outros dias, que felizmente são a maioria, reconheço que sou vítima de um complô entre a impostora (intimamente, é assim que me refiro a ela), a minha irmã, deus e Nero.

Na verdade, a minha vida só não é uma piada porque existe esta narradora, muito convencida, que acha que sabe tudo da minha vida só porque a testemunha (às vezes ouço a sua voz dentro da minha cabeça). E porque a conta por mim, como se de uma história imaginada se tratasse.

1. História inspirada no conto My Life Is A Joke, de Sheila Heti, acessível em: https://www.newyorker.com/magazine/2015/05/11/my-life-is-a-joke (consultado a 17 de Setembro de 2024)