Psicossomática revisitada

dez-2020

Definia eu que a psicossomática era uma das áreas mais interessantes da Psiquiatria quando, há meses, criei este website.

Porque, dizia eu então, estuda as inter-relações complexas existentes entre os aspectos orgânicos (biológicos), psicológicos e sociais, responsáveis pelo desenvolvimento das doenças. Longe estava eu de imaginar, nessa altura, que esse parágrafo serviria de introdução ao artigo que agora escrevo, a propósito do desaparecimento da minha doente Rita.

A Rita partiu num dia chuvoso de finais de Novembro. Lamento muito a sua morte, para mais tratando-se de uma jovem tão bela e que me suscitou tanta esperança. E lamento também a Dor dos pais e da avó - dos avós (também ela inigualável).

Apesar de muito jovem, a Rita estava medicada há anos para uma doença bipolar. Graças ao tratamento, a Rita conseguiu estudar, trabalhar e amar, durante os anos de acompanhamento por isso, quando surgiram as primeiras manifestações da doença que a debilitou, a reacção natural de todos foi supor que a medicação psiquiátrica seria responsável pelas alterações que surgiram, abruptamente, nas suas análises de sangue. Verificou-se depois que não, que ela tinha outra doença, que essa doença era uma leucemia aguda e que a Rita necessitava de fazer tratamento específico para a combater. Assim foi, desde o início da Primavera, até ao final do Verão deste ano, altura em que a doença oncológica foi dada como erradicada. Durante esses longos meses, mesmo triste, a Rita combateu, lado a lado com o tratamento, a doença oncológica.

A Rita veio a falecer, recentemente, de uma complicação inesperada: uma infecção sistémica, que determinou uma intensa reacção inflamatória no seu organismo.

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A morte de cada um dos meus pacientes exige de mim que faça uma avaliação rigorosa daquela que foi a minha actuação durante o seu seguimento. Foi o que fiz a propósito desta doente; revi o diagnóstico psiquiátrico, que me deixou poucas dúvidas, e o seu tratamento, que procurei simplificar, para minimizar os efeitos secundários da medicação. Calculei o impacto das intervenções psicológicas, antes e depois do diagnóstico de leucemia. Depois disso, procurei entender o porquê do seu desaparecimento tão precoce.

A doença bipolar é uma doença do cérebro. Pode coexistir com outras doenças, que envolvam outros sistemas de órgãos, para além do sistema nervoso e, nesse caso, poderá conceber-se como parte de uma doença sistémica. Embora nós, médicos, não tenhamos habitualmente presente esta informação, a verdade é que a leucemia aguda é uma de entre as várias patologias oncológicas que são mais comuns nas pessoas que têm doença bipolar, comparativamente aos indivíduos saudáveis. Outra informação valiosa para compreender o desaparecimento da minha doente é a de que as doenças da tiróide, mas também outras, como a diabetes, a doença cardíaca isquémica e as doenças cerebrovasculares, são mais comuns entre os doentes bipolares, e entre os seus familiares também, do que na população geral.

Estes dados epidemiológicos sugerem que pode haver uma, ou várias causas, comuns às referidas doenças físicas e à doença bipolar. Todavia, a Biologia, e a hereditariedade em particular, não explicam, na totalidade, a associação existente entre a doença bipolar e a doença física. Sabe-se que a interacção entre genes e ambiente é percursora da infamação crónica que subjaz às doenças psiquiátricas graves como a esquizofrenia e a doença bipolar (por exemplo, as infecções maternas que ocorrem durante a gravidez aumentam o risco de ambas as doenças, nos filhos). Mas, mais ainda, é a relação que se estabelece entre o perfil imunogenético específico de um indivíduo e o ambiente que o rodeia, que define o desenvolvimento do sistema nervoso durante os primeiros anos de vida, a maior ou menor sensibilidade aos factores ambientais e a intensidade e severidade das respostas inflamatórias individuais, que caracterizam as doenças e que determinam as comorbilidades existentes (isto é, a coexistência de várias doenças, num mesmo indivíduo).

Existe seguramente uma relação entre a doença bipolar e a doença médica e essa relação é bidirecional. O reconhecimento desta interacção, no presente, deve contribuir para que, no futuro, sejam identificados marcadores biológicos que constituam ferramentas de diagnóstico, orientem as opções de tratamento, com base na história familiar e nos ajudem a desenvolver estratégias preventivas.1

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Para que, no futuro, não haja mais Ritas a lamentar é importante pensar, agora, no porquê da sua partida. Tentar responder a esse porquê, ajuda-me a aceitar o que não posso mudar e reacende em mim a luz da esperança.

Em memória de Rita B.

1. Kesebir S., Koc MI, Yosmaoglu A. Bipolar spectrum disorder may be associated with family history of diseases. J Clin Med Res. 2020; 12(4):251-254