Os passageiros

out-2023

"Não percas o ânimo, Fidalgo. Era este o conselho recorrente entre os primeiros cristãos

e (...) eles tinham razão (...) o sofrimento faz parte da condição humana, e cabe-nos suportá-lo. Mas a infelicidade é uma escolha.” 1

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Os pacientes do hospital de dia (HD) estão de passagem. A sua viagem connosco termina num ápice: os doze meses que contratualizam com a equipa, no início do tratamento, passam a correr e, quando se apercebem, a viagem está a chegar ao fim. A alguns, as mudanças que notam em si próprios, parecem demasiado modestas e, quando isto acontece, a equipa é frequentemente responsabilizada pelo insucesso. Na hora da despedida, esquecem que faltaram a muitos dos dias de tratamento, que selecionaram as atividades terapêuticas em que participavam (por crerem que algumas não tinham qualquer préstimo), ou que se insurgiram repetidamente com o que lhes foi sendo devolvido pelos pares, ou pelos técnicos.

Na equipa, fica também um amargo de boca, um sentimento de impotência, que tem de ser trabalhado internamente, para que não se perca o ânimo e se possa seguir em frente, continuando a ajudar, quem quer ser ajudado. Desse processo de introspeção, que é feito continuadamente, resulta a evidência de que a família tem um papel fundamental no tratamento dos doentes que frequentam o HD.

Nos casos muito difíceis, que são a maioria daqueles que nos são atualmente referenciados, para que o HD seja o catalisador da mudança, tem de haver uma combinação de esforços, entre a equipa e a família.

Daí que a terapia familiar seja um componente tão importante do tratamento no HD. Se a equipa estimula a mudança e se, ao mesmo tempo, a família constitui uma força reacionária, não há crescimento, há apenas estagnação. E o pior é que isso pode ser percecionado pelo doente como insucesso; mais uma falha sua, mais uma mancha para o seu currículo existencial.

A família pode relaciona-se com o HD de diversos modos: limitando-se a acompanhar o seu paciente, nos timings propostos para o efeito, ouvindo apenas o que os outros familiares têm para partilhar ou, no pior dos casos, não aparecendo sequer (nunca).

No entanto, a admissão de um paciente no HD deveria significar, para os seus familiares mais próximos, o início de um processo transformativo, de todos, e não apenas do doente. Isso significa que a família deveria mobilizar-se também para a mudança; para tal, deveria começar por se questionar acerca do seu papel, do seu contributo, para a apresentação sintomática do familiar que foi atingido pela doença. No entendimento da terapia familiar sistémica, o doente é a expressão da doença do sistema, do sistema familiar, que está todo ele doente.

O problema é que, a maior parte das famílias que nos chegam, vem num estado de contemplação (ou, pior ainda, de pré-contemplação), com um total desconhecimento sobre o tipo de ação que reforçou a doença e acerca daquelas que, pelo contrário, são salutares, promotoras de pequenos e progressivos reajustes, inicialmente quase impercetíveis e só notados ao fim de alguns meses. Também não trazem o olho treinado para observar nuances e desvalorizam, sem disso se aperceberem, as pequenas conquistas, resultantes do trabalho conjunto, do doente e da equipa.

Na maioria dos casos, a família confia-nos o seu paciente, na expectativa de que lhe extirpemos o tumor, e o livremos, de uma vez por todas, da maleita de que padece. A verdade é que, se o doente hospeda o tumor, os familiares transportam as metástases (ou vice-versa) e, tal como na oncologia, não se trata nenhum doente retirando-lhe simplesmente o tumor, é necessário debelar também as metástases.

Este problema remete-nos também para o significado simbólico do sintoma. Numa época de rápido desenvolvimento tecnológico, caracterizada por um abismo entre a arte, enquanto produto da criatividade humana e a ciência, resultante do esforço humano, a psiquiatria foi tomada de assalto pelas ciências exatas, pelo que é cada vez mais difícil trabalhar nesta zona de incerteza, que é a teorização acerca do valor simbólico dos sintomas do doente.

Por exemplo (e os exemplos que poderiam aqui ser dados, são muitos), um doente com pensamentos, de caráter obsessivo, de que pode agredir violentamente os outros, sem, no entanto, chegar a fazê-lo nunca, pode estar a comunicar-nos (inconscientemente) o seu receio de ir parar à prisão, como aconteceu àquele seu familiar que (realmente) cometeu um homicídio. Esse medo pode ser tão aterrorizador, que pode paralisar a pessoa, ao ponto de ela deixar de encetar qualquer ação que, potencialmente, possam gerar-lhe ira. A agressividade deixa de ser encarada como inerente à espécie humana e passa a ser olhada como uma emoção negativa, que habita involuntariamente o próprio e que, a todo o custo, deve ser erradicada. Este modo arcaico de pensar impede a pessoa de reconhecer que, em circunstâncias especificas e de forma controlada, a agressividade pode ser adaptativa.

A resistência em aceitar que tal modo de pensar é desadaptativo e patogénico (porque ajuda a pessoa a manter-se doente), inviabiliza o tratamento, pelo menos nos moldes em que o HD está estruturado, uma vez que, neste HD, se trabalha no pressuposto de que o doente, e a sua família, possuem recursos criativos (promotores da saúde mental), que infelizmente não estão a utilizar em seu próprio benefício. Se a família não permite – e o próprio paciente também não quer – utilizar esses recursos, não há muito mais que o HD possa fazer por esses doentes.

No entanto, é a criatividade que nos permite reconhecer o valor simbólico do sintoma. Simbólico, porque nos comunica algo, que muitas vezes não pode ser colocado em palavras, mas que só quando é reconhecido e trabalhado, nos permite uma abordagem terapêutica complementar; aos fármacos, às terapias cognitivas ou mesmo às outras técnicas, químicas e físicas, de tratamento, hoje em dia novamente em voga.

1.Cormac MacCarthy (2022) O passageiro. Lisboa: Relógio D’Água.