Começa assim: “I just need to know that someone out there listens and understands and doesn’t try to sleep with people even if they could have. I need to know that these people exist.”1
Quem o diz é Charlie, um adolescente introvertido (um wallflower) que, no final do livro, fica dois meses internado numa enfermaria psiquiátrica, porque passa pela experiência de ouvir e ver coisas que mais ninguém ouve ou vê. E por se apresentar aos outros de forma bizarra, mas que o próprio não vê: “And I could hear all these songs on the radio, but the radio wasn’t on. (...) And I could see the TV shows, but the TV wasn’t on. (…) The doctor told me that my mother and father found me sitting on the couch in the family room. I was completely naked, just watching the television, which wasn’t on. I wouldn’t speak or snap out of it, they said.”1
A leitura do livro foi recomendada nas aulas de inglês dessa aluna, quando ela frequentava o secundário. Sugeriu-me que o lesse, porque tinha gostado muito dele.
Curiosamente, quando me aproximava do final do livro, dei comigo a emocionar-me. Sem apelo nem agravo.
Percebi depois que isso se devia a várias razões. Em primeiro lugar, porque se tivesse tido oportunidade de ler o livro na adolescência, teria ficado irremediavelmente tocada por ele. Há um psiquiatra na história, que tenta ajudar Charlie durante meses a fio, sem que consiga melhorar de forma significativa a baixa autoestima do paciente. Na verdade, o psiquiatra não consegue ajudá-lo porque não tem acesso ao material (traumático) por ele recalcado. É perto do final da história e no contexto de uma profunda relação de amizade que, em circunstâncias totalmente inesperadas, Charlie tem uma experiência verdadeiramente reparadora, e só depois disso é que as perguntas que o seu psiquiatra lhe tinha colocado, ao longo dos meses, lhe fazem sentido: “And my psychiatrist’s questions weren’t weird after all.”
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Quando eu trabalhava em Psiquiatria de Ligação no Hospital de São Francisco Xavier, um colega mais velho, cirurgião, contou-me a seguinte história. Três médicos vão ao campo para caçarem patos: um é cirurgião, outro é internista e o terceiro é psiquiatra. Vão muito bem, a conversar, quando avistam um bando de patos a levantar voo. Logo os três se preparam para os caçar. Entretanto, um dos patos fica para trás, na cauda do bando. Qual dos três médicos atinge o pato?
Explicou-me ele (triunfante) que era o cirurgião. Pois enquanto o internista reconhecia a que espécie pertencia o pato – levando em linha de conta as suas características, nomeadamente o seu volume, a cor da penugem, a forma do bico e outros detalhes – já o cirurgião pegava na arma e acertava na criatura. Acrescentou o meu colega cirurgião que o psiquiatra (esse...) ficara a meditar nas razões porque o pato tinha ficado para trás e por isso fora vítima do caçador.
À semelhança do meu colega Carlos Resende, achei a história hilariante e (tal como ele) revi-me totalmente na caricatura.
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Também me emocionei com o livro por outra razão. E a pequena anedota sobre os médicos ajudou-me a percebê-la, pois destaca a diferença entre um cirurgião e um psiquiatra: enquanto um dá prioridade à ação, o outro alicerça a sua prática na reflexão.
Muitos anos de experiência clínica em Psiquiatria ensinaram-me que o papel dos médicos na mudança dos pacientes é relativamente modesto, restando-nos esperar pacientemente que as circunstâncias de vida dos doentes, a certa altura, os desafiem e transformem: não passamos de meros catalisadores, como aconteceu com o jovem protagonista do livro e o seu psiquiatra (a melhor parte do nosso trabalho é que acabamos por ser testemunhas privilegiadas dessa transformação).
Apesar do que acabei de referir, na última dúzia de anos tenho constatado quão surpreendentes os grupos psicoterapêuticos podem ser. Eles dão um valioso empurrão no processo de mudança, ao criarem circunstâncias inesperadas, que frequentemente reproduzem episódios pretéritos da vida dos pacientes e que, exatamente por isso, se tornam transformadoras. Toda a ação se passa no tempo atual mas, por instantes, as linhas do tempo, interno e cronológico, cruzam-se e é nessa altura que a pessoa muda, cresce e avança. Costumo dizer que o grupo (psicoterapêutico) é um verdadeiro acelerador de partículas.
Decorre também do que acabei de afirmar que, em Medicina, a perfeição (que perseguimos e nunca alcançamos) só se consegue com a prática, com a oportunidade de acompanhar diretamente doentes (seja para os operar, seja para os ouvir) e com horas e horas de trabalho clínico. Decorre daí que um certo grau de subespecialização é inevitável na Psiquiatria: se vejo muitos doentes psicóticos, consigo mais facilmente fazer o diagnóstico diferencial entre as diferentes psicoses do que o meu colega que trabalha com doentes dependentes de substâncias. Se acompanho as interações de um doente em grupo, durantes meses seguidos, começo a identificar padrões de comportamento que se repetem e que são maladaptativos, e consigo fazê-lo muito melhor que aquele meu colega, que aplica repetidamente tratamentos psiquiátricos a doentes que se encontram sob efeito de anestesia. E por aí fora.
Qualquer médico que tenha oportunidade de praticar determinada técnica, acaba por tornar-se muito competente nela. Naturalmente, um bom cirurgião será com certeza um mau psiquiatra e aquele aluno observador, que permanece silencioso na sala de operações, poderá vir a ser um excelente psiquiatra (o tal papel de parede na sala de operações). Fundamental, é gostar do que se faz, sejamos psiquiatras ou cirurgiões, para conseguirmos aguentar a sobrecarga emocional que a profissão nos exige.
1. Stephen Chbosky (1999). The Perks of Being a Wallflower. (2ª ed.) Berlin: Cornelsen.