O mundo às costas

out-2020

Basta só a palavra: bipolar.

É um daqueles termos que recalcam outros termos, supostamente fazendo mais jus à coisa, ao retirar o elemento discriminatório à designação. Eufemismos camuflados que, ao rebatizar o objeto que designam, lhe retiram o espinho que este encerra. Em última análise, porém, o velho temo “maníaco-depressivo” adequa-se muito melhor, pelo menos no meu caso. Começo por estar maníaco, a seguir fico depressivo: tão simples quanto isso. Primeiro o impulso maníaco, que para a maioria das pessoas afetadas dura de um par de dias até semanas, mas para algumas poucas até um ano; depois seguem-se os sintomas de sentido inverso, a depressão, o total desespero, até dar lugar a um vazio insensível e se metamorfosear num estado de apática amorfia. Também esta fase pode, consoante o doente, durar de alguns dias até dois anos, talvez até mais. Eu sou daqueles a quem calhou a assinatura anual. Quando deslizo para o fundo ou quando voo nas alturas, faço-o durante bastante tempo. Quer em voo, quer em queda, não há quem me detenha.

As explicações médicas são modelos racionais construídos pelos médicos, que pretendem conferir um contexto de sentido passível de ajudar o doente a lidar com o choque da perda de si mesmo: os neurónios dispararam com demasiado vigor; o stress foi portanto contraproducente. Contudo, tais explicações complementares têm tanto a ver com a experiência concreta da doença quanto a descrição do funcionamento de um sistema de travagem tem a ver com uma colisão entre vários veículos. Está-se diante do acidente com o manual de instruções na mão, nos esquemas desenhados tenta-se encontrar as peças dos destroços que ali, tão palpáveis, se tem diante de si. Só que não se consegue encontrar seja o que for. Os factos impossibilitam a explicação. O acidente não está previsto na construção.1

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Thomas Melle tenta em Die Welt im Rücken explicar a doença bipolar que durante anos o afligiu, torná-la perceptível para outros, mas também para si mesmo. [...] Este livro, que em edição portuguesa poderia chamar-se O Mundo às Costas, fala da felicidade passageira, da iminência de uma tragédia sempre à espreita [...] 1

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Não existe, tanto quanto sei, nenhum livro editado, semelhante ao de Thomas Melle, escrito na primeira pessoa, por um escritor português. Como afirma Paulo Rêgo, o tradutor, na crítica que faz ao livro, no Portal de Literatura Alemã Contemporânea, o tema (a doença bipolar) é abordado de forma directa, não recorrendo à descrição distanciada dos factos. Por essa razão, diz ele, a sua leitura é instrutiva, ainda que não do modo que um manual de Medicina o seria.

Concordo que a leitura integral do texto poderá dar (aos leitores de língua alemã, já que o livro não se encontra editado em Portugal) uma perspectiva, vinda de dentro, do que é ser bipolar. Pese embora o facto de que se trata de um caso isolado e, por isso, não representativo da totalidade da experiência de ter doença bipolar.

Penso mesmo que a sua leitura enriqueceria a maioria dos psiquiatras portugueses, tornando-os não só mais sensíveis ao sofrimento dos seus doentes, mas também ao fardo de este acarretar tratamentos que não são isentos de efeitos secundários. Para além disso, reforçaria a importância de educar, isto é de fazer chegar aos doentes e aos seus familiares informação fundamental acerca da doença, o que contribuiria para prolongar os períodos de estabilidade - sem episódios de mania, nem de depressão - durante os quais o doente consegue recuperar algumas das funcionalidades (ser capaz de trabalhar, ser capaz de amar), que perde nos períodos de crise. Porque educar é tão importante como medicar.

 

1. Thomas Melle (2016). Die Welt im Rücken. Berlim: Rowohlt Berlin. Tradução e crítica de Paulo Rêgo. Letra - Portal de Literatura Alemã Contemporânea, 2019. Acedido a 5 de Outubro de 2020, em: https://www.goethe.de/ins/pt/pt/kul/sup/lit/wir.html.