pela urgência de criar um Centro de Responsabilidade Integrada (CRI) para a saúde mental na Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental. Houve uma corrida dos médicos aos pedidos de dedicação plena no Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental e a seguir contaram-se as espingardas para perceber qual a dimensão do exército que iria responder às necessidades da população residente na respetiva área de influência. Prometeram-se subidas salariais e incentivos financeiros elencados a indicadores (costurados à medida, nos quarteis do Ministério da Saúde), a todos os elementos das equipas multidisciplinares que viessem a integrar o CRI, desde que isso acontecesse rapidamente, ou seja antes das eleições legislativas do início de Março: o governo de gestão age diligentemente para utilizar os fundos do PRR, procurando fixar médicos (e enfermeiros) no SNS, face à hemorragia de recursos humanos a que temos assistido nos últimos anos e à agonia dos serviços de urgência, de que fomos testemunhas nos últimos meses.
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Quando em Maio de 1998, era eu recém-especialista, integrei o núcleo inicial de profissionais de saúde que foi para Cascais ver doentes mentais numa moradia ao lado da estação de comboios da CP, também eu fui contratada ao abrigo de um plano de modernização dos serviços de saúde mental, que deliberou que a população do concelho de Cascais deixasse de ser acompanhada pelos colegas do Hospital Miguel Bombarda e passasse a ser alvo da intervenção de uma equipa comunitária de saúde mental, criada especificamente para esse efeito, inovação essa em que o Hospital de São Francisco Xavier tinha competência demonstrada. Esta equipa passou a deslocar-se propositadamente à vila de Cascais, para fazer mais e melhor que os profissionais anteriores, que vinham do vetusto hospital asilar. Inicialmente, é verdade, pagavam-nos ajudas de custo por causa das deslocações, mas isso deixou de acontecer rapidamente.
Quando há dias assisti à corrida dos meus colegas, uns mais novos que outros, ao regime de dedicação plena, lembrei-me desses tempos em que também eu tinha ilusões. Nessa época, tinha-me inscrito num curso de mestrado, que acabou por ficar pela metade, em grande parte porque dediquei toda a minha jovem energia ao trabalho na equipa comunitária de Cascais. No final de contas, esse esforço nem foi valorizado pelos meus superiores: na altura abriu um concurso no meu Serviço, com apenas uma vaga de quadro, e nem sequer fui eu a escolhida (o colega escolhido deixou o Serviço alguns anos depois e eu só me tornei efetiva depois disso, já com outro Diretor, e já depois de ter ido coordenar outra equipa do Serviço, a convite deste).
Parece que tudo isso aconteceu noutra vida. Ainda assim, olhando em retrospetiva, parece-me que a relação com o meu Serviço mudou a partir desse preciso dia, aquele em que soube que tinha sido deixada intencionalmente fora (ao ser aberta apenas uma vaga para o quadro).
Suponho que essa foi a principal razão porque, na vida que vivo atualmente, decidi ficar fora do CRI e continuar com os projetos que fui construindo paralelamente, ao longo dos últimos 25 anos, sobre os destroços das desilusões que fui tendo no meu Serviço. Esses projetos tornaram-se possíveis, em grande medida, devido à opção de reduzir o meu horário hospitalar, o que aconteceu sensivelmente 10 anos depois. A medida governamental de apenas elencar incentivos salariais a um horário de trabalho de 40 horas é também contrária ao meu entendimento de que se pode trabalhar eficientemente no SNS, em qualquer modalidade de horário: a qualidade (do serviço prestado) não é proporcional à quantidade de horas (existente no horário), mas sim ao que nelas se faz.
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No filme Vidas Passadas1 assistimos aos encontros e desencontros de dois amigos de infância que, ao que tudo indica, teriam casado e tido filhos, não fosse dar-se o caso de os pais da jovem protagonista terem decidido emigrar, em busca de melhores condições de vida, para eles e para as duas filhas do casal. Quando se reencontram, os dois amigos interrogam-se sobre se já se teriam conhecido em vidas passadas e se não seriam almas gémeas. Nós somos espectadores privilegiados da cumplicidade que os une (tal como o marido dela, que fica perdido na tradução dos diálogos entre os dois) e, pouco depois disso, o protagonista pergunta à antiga namorada se, naquele preciso instante, não poderão estar a começar uma nova vida, sem que saibam ainda que papeis irão desempenhar, daí em diante, um para o outro.
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Neste mês de Fevereiro julguei por instantes estar dentro da película pois senti-me, primeiro, como o marido, excluída (do que está a acontecer no meu Serviço) e, depois, como o amante, que consegue transformar o momento de retirada numa oportunidade de recomeço e de esperança. Quanto ao filme, recomendo vivamente que o vão ver, num cinema perto de vós!
1. Celine Song (2023). Vidas Passadas.