Némesis

abr-2021

Hoje, dia 23 de Abril, comemora-se o Dia Mundial do Livro.

Por isso vou falar do último romance do escritor norte-americano Philip Roth, Némesis. Nele, o autor conta a história de Bucky Cantor, um jovem de 23 anos, que durante o Verão de 1944 vem a contrair poliomielite, doença que muda por completo o rumo da sua história (e o enredo do livro).

Antes disso, quero salientar o papel dos livros na transmissão de conhecimentos: antes da era digital, os livros compilavam o conhecimento existente sobre uma qualquer matéria, da mesma maneira que hoje em dia a internet nos permite o livre acesso a informação sobre qualquer assunto. Porém, ao contrário da internet, a informação contida nos livros é-nos apresentada de forma trabalhada, resultando do processo de reflexão do seu autor e por isso contribui decisivamente para o desenvolvimento do conhecimento, na medida em que este se faz de argumento e contra-argumento e, portanto, de complexidade, por oposição a simplificação.

De entre as várias formas de transmitir conhecimento através dos livros, destaco o romance. Mais do que um estilo literário, o romance permite-nos, adotando o ponto de vista do narrador, confrontar-nos com a realidade que ele descreve, que podemos sentir como mais ou menos próxima de nós e que sendo, evidentemente, uma perspetiva parcial da realidade descrita (ou meramente imaginada), constitui, ainda assim, uma abordagem ao conhecimento disponível.

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A poliomielite, também designada por paralisia infantil, porque se acreditava que atingia apenas as crianças, foi uma doença viral, muito contagiosa, que se manifestou na forma de epidemia durante o século XX e que foi responsável pela morte de muitas pessoas em todo o mundo, deixando outras tantas com sequelas permanentes, a nível motor. A paralisia dos músculos respiratórios levava muitas vezes à morte por asfixia e os doentes necessitavam de ventiladores mecânicos que, tal como hoje se verifica um pouco por todo o mundo, devido à epidemia por Covid-19, ficavam frequentemente esgotados: “As que ouvia eram as sirenes das ambulâncias que iam recolher vítimas da pólio e transportá-las para o hospital, sirenes que gritavam com estridência: Deixem passar – vai uma vida em perigo! Vários hospitais da cidade tinham esgotado recentemente os pulmões de aço, e os doentes que deles necessitavam estavam a ser transferidos (...) enquanto não chegava a Newark novo carregamento de respiradores mecânicos” 1

A descoberta da vacina da poliomielite foi celebrada efusivamente nos Estados Unidos da América, tendo permitido erradicar a doença. Em Portugal, a eliminação da poliomielite iniciou-se com uma maciça campanha de vacinação em 1965, datando de 1986 o último caso descrito em território nacional. Hoje, a vacina faz parte do Programa Nacional de Vacinação, sendo administrada gratuitamente em várias doses, durante os primeiros anos de vida das crianças.

Vivemos atualmente outra epidemia, que se pensou atingir, com gravidade, apenas os mais velhos. Sabe-se já que não, que os muito jovens também podem desenvolver formas graves da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV2). A vacina para esta epidemia foi descoberta em 2020, já está disponível e existem várias formas de a administrar, podendo requerer uma ou mais administrações.

Assistimos inicialmente ao receio da vacina, entretanto algumas pessoas têm recusado a administração de uma das formas de vacinação e alguns negam mesmo a existência da doença. Existem movimentos sociais, um pouco por todo o mundo, que negam a necessidade de usar máscara e que recusam a necessidade de vacinação. A internet ajudou a propagar a posição dos negacionistas, dificultando a adesão maciça da população de alguns países a uma importante medida de Saúde Publica, que contribui para o bem de todos.

Por isso, no Dia Mundial do Livro, quero prestar justa homenagem ao Livro e ao conhecimento que ele ajuda a transmitir, precisamente porque exige um processo pessoal de lenta digestão da informação transmitida. Esse processo é o oposto daquele que é utilizado pelos negacionistas e que subjaz às várias teorias da conspiração, um processo de digestão rápida de ideias mais simples e imediatistas, e por isso muito mais atrativas.

O livro pode transmitir-nos conhecimento de forma lúdica. Por isso, acerca das epidemias e do que podemos aprender com as anteriores, recomendo a leitura deste romance, que é contruído tendo como pano de fundo a epidemia de poliomielite: “Tu és mesmo assim tão maravilhosa? Não podia acreditar que existisse uma rapariga assim. Era o rapaz mais feliz do mundo. E imparável. Está a perceber? Com todo aquele amor, o que é que me podia parar? (...) Não queria que a Márcia me visitasse. Foi assim que a perdi.”

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O que é que tudo isto tem a ver com a saúde mental? A palavra némesis significa adversário ou obstáculo difícil de derrotar. A negação é um processo intrapsíquico, utilizado a título individual, para lidar com factos ou circunstâncias adversas ao próprio e é utilizado maciçamente nas psicoses (nomeadamente na esquizofrenia, que começa habitualmente no início da idade adulta e que condiciona inequivocamente a história pessoal do doente). Os movimentos negacionistas são fenómenos coletivos, que recorrem igualmente à simplificação da realidade e que propõem formas alternativas de lidar com ela. Ambos os fenómenos põem em risco a saúde, individual e coletiva.

1. Plilip Roth (2011). Némesis. Alfragide: Publicações Dom Quixote.