e de ter vindo à consulta no mês de Junho. E de os Josés frequentarem o hospital de dia nessa altura: fui testemunha de tão diversas formas de vida.
O João tem atualmente 38 anos e, apesar de ter uma doença bipolar – que o fez estar diversas vezes hospitalizado, desde menino – não regista internamentos há mais de dez anos. Na última década emigrou, para conseguir amealhar dinheiro do seu trabalho, entretanto casou-se e mudou de país novamente. Reside agora na Suíça, com a esposa, e vive do seu trabalho.
Comecei a acompanhá-lo em 2010, numa cidade diferente daquela em que ele morava, para ele não ter de carregar o estigma de ser doente mental: depois da consulta, aviava toda a medicação, de uma só vez, na farmácia mais próxima, para não o fazer na localidade em que residia. Assim, evitava o falatório dos vizinhos. Quando mudou de cidade, continuou a consultar-se comigo, mesmo tendo de percorrer uma grande distância para vir ao consultório e assim continuámos a fazer, desde que emigrou. No seu trabalho, ninguém sabe que ele tem uma doença mental grave, e que já esteve muitas vezes internado, e a mulher pode suspeitar da natureza da sua doença, mas ele nunca lha confirmou. Não conheço nenhum familiar do João, nem sequer um amigo dele; veio sempre sozinho às consultas e, depois de vencida a desconfiança inicial que tinha em relação aos psiquiatras, nunca mais faltou a um agendamento. Cumpre escrupulosamente a sua medicação, faz as análises que lhe peço e traz-me sempre os resultados e, felizmente, não tem sido necessário aumentar a dose de lítio ou acrescentar mais remédios ao seu receituário.
Depois do quinto internamento, o João excluiu os pais do seu tratamento. E, depois disso, do resto das decisões importantes da sua vida.
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Quando eu passei para o secundário, tive aulas numa sala onde tinha sido pintada a figura de um rapaz adolescente. Com atitude desafiante, ele respondia à pergunta sobre o que queria ser, quando fosse adulto, afirmando que queria ser simplesmente um Zé-ninguém.
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Há dias, lembrei-me do Zé-ninguém de outrora e pensei que os Josés lá do hospital de dia são os Zé-ninguéns de agora. Com idades que vão dos vintes aos trintas (e muitos), estes homens, tímidos e retraídos, vivem à sombra dos pais. As mães mantêm relações simbióticas com os filhos; eles não estudam nem trabalham e, evidentemente, não namoram. Evitantes do contacto social, têm medo de viver e por isso passam a maior parte do tempo em casa, dentro dos seus quartos, a navegar na internet, frequentemente (mas não exclusivamente!) a jogar online. Mesmo estando a frequentar o hospital de dia (lugar de mudança, por excelência), eles demonstram uma enorme resistência ao tratamento; a sua tenacidade faz com que se mantenham os filhos (queridos) das (suas) mães. Educados, sem dúvida, mas incapazes de demonstrar gratidão, zangam-se até, se insistimos naquilo que, objetivamente, está ao alcance deles fazerem, para se autonomizarem.
Os dias vão passando e com eles as semanas, os meses e o ano de tratamento no hospital de dia: as suas vidas passam ao lado da identidade que poderiam ter tido, se tivessem verdadeiramente querido ser alguém.
PS: “Não Posso nem Quero” é o título de um livro de histórias curtas, escrito por Lydia Davis. Na página 55 do livro, a autora explica que foi privada de um prémio, por ter sido considerada preguiçosa.1 Em vez de “Não Posso nem Quero,” deveria ter escrito: “eu não posso e também não quero.” No meu caso, corro o risco de parecer acintosa, se o disser. Mas então, aqui vai: a verdade é que (os pais) não os deixam crescer, mas os Zé-ninguéns também não querem tornar-se adultos. E, face a isto, a verdade é que nada se pode fazer por eles!
1. Lydia Davis (2014) Não Posso nem Quero. Lisboa: Relógio D’Água.