Esta crónica é dedicada a todos aqueles pacientes que foram, numa qualquer altura das suas vidas, acompanhados por mim, mas que decidiram abandonar os seus seguimentos de forma extemporânea. Nalguns casos, esse acompanhamento durou escassos meses, noutros, um ano ou mais. Alguns deles terminaram abruptamente.
Se é verdade que nem todos tinham uma doença mental diagnosticada, no sentido médico do termo, é inequívoco que todos eles tinham características de personalidade que não são adaptativas. Essas características tomaram contornos sádicos e emergiram à superfície quando alguns desses pacientes ignoraram as tentativas que fiz para os contactar. Noutros pacientes, os esforços que ia desenvolvendo para os ajudar a retomar a rédea dos seus destinos, abrindo mão de relações tóxicas ou modificando anteriores projectos profissionais, foram desvalorizados. Noutras situações, a incapacidade para analisar de forma racional e sem afectos negativos, como a zanga ou a vergonha - associados a sentimentos de culpa, abandono ou humilhação -, as dificuldades que tinham surgido durante o tratamento, fez com que terminassem precipitadamente os seus acompanhamentos. Noutros casos ainda, foram os traços dependentes de personalidade que os traíram: porque alguns destes pacientes se tornaram, efectivamente, dependentes de substâncias psicoactivas, fossem elas legais ou ilegais.
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O termo resistência refere-se ao esforço que o paciente enceta para evitar a emergência de aspectos inconscientes, acerca de si ou de outros, que lhe causam angústia e com que, por isso, não quer confrontar-se. Refere-se especificamente a uma dificuldade técnica, que surge no setting terapêutico analítico. Todavia, poderá pensar-se no conceito de uma forma mais lata e conceptualizá-lo como resistência à mudança.
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No caso dos referidos pacientes, o abandono do trabalho que vínhamos desenvolvendo em conjunto pareceu-me claramente relacionado com a sua resistência à mudança.
A verdade é que, no âmbito da minha profissão, tento modificar, por pouco que seja, a rota daqueles com quem me cruzo, confiando na minha capacidade de ler, interpretar e desintoxicar (assim o espero) a realidade trazida pelos pacientes. Penso, aliás, que o meu trabalho vive da tenacidade com que procuro contrariar esta inevitabilidade: a de que alguns pacientes são mesmo incapazes de fazer mudanças significativas.
Ainda assim, gostaria de dizer a cada um daqueles meus pacientes que talvez tivesse tido razão: houve um momento em que a [mudança] esteve ali, ao seu alcance, embora ele [ela] não tenha sabido aproveitar a oportunidade.2
Esta crónica é dedicada ao Nuno, à Daniela, ao André, à Ilda, à Neuza, à Sandra, ao João, à Sara, ao Vitor, ao Miguel e à Margarida.
1. Hermann Hesse (2002). Knulp. Três histórias da vida de Knulp. Miraflores: Difel, Difusão Editorial, S. A.
2. Osvaldo Soriano (1994) Quarteis de Inverno. Vila Nova de Gaia: Edições Asa.