O que lhes explico nessa altura é que, quando um bom psiquiatra recolhe a história clínica do paciente, isto é o motivo que o levou a procurar cuidados de saúde, as suas queixas – atuais e passadas –, o que as agrava e o que as alivia, as outras maleitas de que padece, os seus hábitos e as doenças dos seus familiares, vai simultaneamente avaliando a veracidade das informações fornecidas por ele, através da observação de várias dimensões do seu estado mental. Também a própria forma como o paciente se relaciona com o médico durante essa entrevista é observada, enquanto decorre a interação entre os dois e depois analisada em conjunto com a informação clínica acima descrita. E se houver fontes adicionais de informação, também a elas o médico recorre.
Explicado assim, o aluno percebe facilmente que o psiquiatra não se limita a reproduzir o que lhe foi relatado, antes processa e descodifica todo o conjunto de informação a que tem acesso, no sentido de formular um diagnóstico e de traçar um plano terapêutico, que responda às queixas do doente e que, ao mesmo tempo, leve em linha de conta as suas características individuais.
Por isso, um psiquiatra não é um jornalista. Porque não se limita a transcrever o que ouve e o que observa. E também porque as suas ações têm um impacto imediato no seu público – a pessoa que está mesmo à sua frente.
Decorre do que acima afirmei que o psiquiatra é o médico especialista em identificar eventuais motivações – conscientes ou inconscientes – que existam por detrás dos sintomas e dos sinais (o que o doente diz e o que o médico observa), que lhe são levados a análise.
Há doentes que têm manifestações (de doença) que servem propósitos inconscientes. Num exemplo extremo, alguns doentes mantêm sintomas e/ou sinais que não configuram nenhuma entidade patológica específica, o que leva a um enorme desperdício de tempo e de recursos (dos serviços públicos ou do próprio), no afã de diagnosticar a doença em causa, sem que desse processo resulte o reconhecimento de uma entidade medicamente reconhecível. Nesse caso, o doente pode beneficiar somente da atenção que lhe é dedicada pelo médico, durante o processo de diagnóstico.
O doente pode também, através das suas manifestações, aspirar a manter a atenção do seu médico: porque não compreendeu todas as instruções acerca do tratamento, ou porque a estas se juntam os efeitos secundários deste, ou porque surgiram outros sintomas, entretanto. Talvez o doente obtenha do seu médico a atenção que aprendeu a só conseguir dos seus familiares, quando se queixa de um qualquer mal-estar. Esse discurso pode, até, tornar-se o discurso dominante do paciente.
Noutros casos, a motivação é consciente e, nesse exemplo, podemos não estar a falar de doentes, mas antes de impostores. Na medida em que simulam uma doença, para dela retirarem proveito em nome próprio.
Às vezes, o psiquiatra trabalha numa margem muito estreita, entre aquilo que é sofrimento genuíno e aquilo que é benefício secundário (a tal atenção privilegiada do familiar ou do médico) ou mesmo material, retirado pelo cidadão, das queixas que apresenta aos clínicos. A questão torna-se ainda mais complexa para o psiquiatra, porque este sabe que as duas situações podem, inclusivamente, coexistir: a doença e os benefícios que dela se retiram (e que contribuem para a perpetuação da mesma).
Um bom psiquiatra tem a capacidade de identificar tentativas de manipulação por parte dos outros e isso resulta de um intenso processo de treino, durante o qual aprende a estar atento aos mais ínfimos pormenores. Essa capacidade está, às vezes, tão desenvolvida, que pode até tornar-se evidente para aqueles que com o médico convivem, no seu dia a dia. Como me aconteceu também a mim, quando, há dias, me cruzei com o talhante que atravessava a passadeira e reparei nas suas mãos, que eram a parte mais desenvolvida do seu corpo, à custa de tanto esquartejar carcaças de animais de grande porte.
Quando, ao longo deste mês, me confrontei com tentativas de manipulação (dentro e fora do meu contexto profissional), não pude deixar de evocar aquele excerto de Neblina1, o capítulo em que Miguel Sousa Tavares (jornalista e escritor) descreve a tentativa, infrutífera, de manipulação (e de suborno) de um funcionário público de província. Nesse capítulo, o autor demonstra como a corrupção grassa, em todos os níveis da sociedade portuguesa, outrora como agora. E como, simultaneamente, deposita esperança nesse herói anónimo, provavelmente inexistente que, em face do poder, às vezes demonstra confiança (confundida com arrogância) e, outras vezes, excesso de humildade (tomada como total disponibilidade para se deixar manipular): “Mas às vezes, como agora, surgia um pequeno grão na engrenagem oleada e previsível em que se habituara a funcionar e onde tudo estava sempre ou quase sempre sob controle."
O livro é uma ode ao país, com as suas verdades e contradições, e a sua leitura deveria ser recomendada nas nossas escolas secundárias. E, se bem que não se possa confundir manipulação com corrupção, neste mês de Abril, quero louvar o jornalista que escreveu o livro e também testemunhar como me sinto orgulhosa da minha profissão, que me permite separar o trigo do joio, no hospital, na clínica e no consultório onde trabalho e, para além disso, neste ou naquele conhecido ou vizinho com quem me cruzo inesperadamente na rua, e de quem me sinto compelida a escapar. É também pelo treino que tive para me tornar psiquiatra que procuro, cada vez mais, fazer uma leitura objetiva e desapaixonada da realidade que me rodeia.
1. Miguel Sousa Tavares (2013). Madrugada Suja (1ª ed). Lisboa: Clube do Autor.