Não apenas porque já muitos portugueses morreram devido à epidemia. Nem por haver, em Portugal, muitos doentes graves, e outros menos graves, que precisam de estar internados, devido à covid-19. Para mim, também é um dia triste porque, no meio desse universo de doentes internados, está a minha doente Sónia (vou chamá-la assim). A Sónia escreveu o seu testemunho em Novembro do ano passado, numa altura em que estava clinicamente estável e se encontrava ativa. A Sónia trabalha no sector da saúde e, também por isso, é de lamentar que, nesta altura, ela não possa dar o seu contributo para a manutenção da saúde dos portugueses.
A Sónia sofre de uma doença mental grave, encontra-se medicada e, exatamente por isso, conseguiu permanecer estável durante os últimos cinco anos, durante os quais voltou a trabalhar e a viver sozinha. Apesar disso, a Sónia não conseguiu resistir à tentação de manipular a sua própria medicação (ainda que alertada para o risco de o fazer) e, infelizmente, não teve o discernimento necessário para reconhecer os sinais precoces de recaída, aqueles que permitem reverter, se houver uma intervenção rápida e musculada, a recorrência dos sintomas psicóticos. Relendo o seu testemunho hoje, parece-me que a afirmação da Sónia - O próximo passo será livrar-me do maldito chapéu, nem que para isso tenha de" apanhar umas molhas” - já contemplava a possibilidade de suspender a medicação antipsicótica.
Admito que, na altura, isso pudesse não ser inteiramente consciente para a Sónia, mas agora, em Janeiro, parece-me que ela estava a comunicar-me que se encontrava disposta a correr o risco de parar a medicação (crendo que os sintomas do passado não retornariam), mesmo indo contra tudo o que havíamos discutido nas consultas anteriores.
A Sónia está agora internada num Serviço de Psiquiatria e se é verdade que, por esse facto, se livra de apanhar uma molha hoje, também sei que se sente injustamente manietada. E sei ainda que, no seu íntimo, se sente revoltada com o desfecho da sua aventura à chuva. Mais arrisco dizendo que, apesar de zangada com o mundo, a sua maior impotência reside no facto de não conseguir controlar a sua doença nem a sua vontade de, magicamente, se livrar dela.
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O problema é que a doença mental grave é como um plano inclinado: à medida que a descompensação prossegue (o ângulo de inclinação aumenta), o controle foge debaixo dos nossos pés e, qual chão escorregadio, a queda torna-se iminente e a distância até ao topo, impossível de escalar sozinho. Por isso, nunca é demais relembrar que, o tratamento com antipsicóticos diminui claramente o risco de recaída e os internamentos psiquiátricos, evitando maior sofrimento para o próprio e para as suas famílias.