História interrompida

jul-2020

Gostaria de acabar uma velha história que deixei interrompida há tantos anos.

Encontrei-a por acaso numa gaveta. Com estupor, pela primeira vez na vida, aconteceu-me ler uma coisa que não me recordava de ter escrito. Três páginas e meia de caligrafia normal; ligeiramente amarelecidas, é triste dizê-lo, recobertas de facto por uma leve pátina de dissolução, de fadiga e de morte, se bem que apenas dez anos tenham passado.

Descrevia-se, naquelas folhas, uma grande casa, (...) na sala do rés-do-chão estavam reunidos caçadores, (...) falavam, com alusões moderadas, sobre qualquer coisa de estranho e preocupante que acontecera, ou estava a acontecer, ou podia acontecer (pelo manuscrito não se percebia bem). No exterior reinava a tarde de Verão, com o seu grande sol silencioso, carregado de expectativas.

Na terceira folha conta-se (...) como era jovem, doce e gentil (...), abandonando-se com muita inocência a confusos pressentimentos de amor. Se me recordo dela! E neste ponto a história foi interrompida, deixada imprevistamente em suspenso.

A verdadeira história não tinha ainda, por conseguinte, começado. Notava-se apenas uma considerável atmosfera de espera e de mistério; ansiosa e vaga ao mesmo tempo, como acontece em certos dias da vida. E, agora que penso nisso, vem-me à memória também outra coisa: pela estrada (...) recordo-me de que devia chegar alguém, um cavaleiro, um homem que trazia notícias, um ser muito significativo, daqueles que vulgarmente se diz serem enviados pelo destino. À sua chegada iria acontecer um facto grande e poético. O quê, exactamente? Não me lembro.

Não consigo, de facto, encontrar na memória o que a presença do cavaleiro devia significar. E, no entanto, hoje gostaria de continuar a escrever, de terminar a história (...).1

A antiga paisagem está intacta. O silencioso sol do Verão é idêntico ao de outrora, dez anos antes. E igual me parece o ar, igualmente misterioso e inquietante. (...) agora (...) como nas últimas linhas do manuscrito inconcluído. Escutei, imóvel, e o meu coração perturbava-se. Mas que acontecera? (...) E recordei-me de tudo.

Oh, tu eras uma florzinha quando te vi pela primeira vez, há tantos anos, e esta história começava. Que aconteceu, pois? Uma florzinha pura e grácil, não contaminada. E sorrias ao mundo como uma nascente e à tua volta flutuavam ligeiros sonhos de Primavera, acariciando-te os olhos e os lábios. O suave encanto da infância não te tinha ainda traído. Meu Deus, que aconteceu? Cantavas como os pintassilgos ao alvorecer, timidamente voltada para as felicidades desconhecidas que estavam lá a esperar-te. Do triste mundo, nada, nem sequer uma minúscula sombra, descera sobre ti. E tudo, as mais incríveis fábulas eram naquele dia possíveis, naquele breve dia (...).1

*

Também a ti, A., te conheci brevemente. Passaste pela minha vida durante breves horas da tua curta existência, que em nada são proporcionais à indelével marca que em mim deixaste.

Quando a tua vida foi interrompida eras flor, nascente e ave - e eras grande, mas eu não o sabia ainda.

Fiquei a conhecer-te melhor depois de “tudo, as mais incríveis fábulas serem naquele dia possíveis, naquele breve dia.” Naquele outro dia, o dia seguinte, senti um rosário de emoções: perplexidade, horror, revolta, impotência, tristeza e culpa. Estas emoções encontraram em mim uma porta escancarada e causaram uma verdadeira revolução dentro da minha casa.

- Culpa? – perguntas tu.

- Sim, culpa. E foi a culpa que me fez sentir tão intensamente a tua perda, me fez soluçar e gemer e me fez começar a escrever isto que agora aqui deixo.

- Mas... culpa, de quê?!

- Culpa por te ter induzido a acreditar que tu (e outros, tão jovens quanto tu) serias capaz de mudar o mundo. Que, com o teu exemplo de coragem e perseverança, conduzirias os outros até à Luz. Farias, fariam, conhecimento. Farias, fariam sínteses. Unirias e uniriam o que era inconciliável, inegociável e irreversível no mundo dos adultos. Culpa por te ter omitido, culpa por te ter enganado: não, o mundo que conheceste não é justo. A tua e tantas outras histórias ficarão definitivamente interrompidas. A tua e tantas outras histórias não terão um justo castigo para o culpado. A tua e tantas outras histórias não terão um bom autor que as conclua, escrevendo manuscritos. Ficarão “(...) ligeiramente amarelecidas, é triste dizê-lo, recobertas de facto por uma leve pátina de dissolução, de fadiga e de morte.”

*

Fui testemunha da Dor da tua família. Inigualável. Inigualável porque cada família infeliz, é infeliz a seu modo e apenas as famílias felizes, as que não conhecem a Dor, são iguais entre si.

Mas fui também testemunha do movimento cívico que se colocou ao lado do sofrimento dos teus, pedindo, em silêncio, que não houvessem mais histórias interrompidas e sofridas como, infelizmente, foi a tua. E, enquanto eu passei por lá incógnita, debaixo do “grande sol silencioso,” houve quem, em nome da tua família, tivesse lá ido para salvaguardar o teu nome, que é também o seu, deixando-o incólume. E tão assepticamente limpo quanto as roupagens daquelas que, meras semanas antes, tinham rido juntas contigo, a escassos quilómetros das verdejantes e vespertinas árvores, debaixo das quais a tua história foi interrompida, e que se mantiveram ao largo do enorme sofrimento que a tua ausência abrupta, inesperada, causou.

Que mundo é este, aquele em que vivemos? Que tipo de cegueira nos impede de ver que o inconciliável só é inegociável dentro da nossa cabeça e que dessa forma o irreversível se torna ainda mais irreversível?

Para que não passem dez anos até que a tua história seja contada da forma como a vejo – como uma iluminada, inspiradora e grande, ainda que curta, caminhada – deixo aqui estas reflexões registadas, optando por torná-las públicas.

Em memória de A.O.

1. Dino Buzzati (2007). História interrompida – Pânico no Scala, Amadora: Edições Cavalo de Ferro.