Por essa razão, não podia deixar passar o Dia Mundial da Saúde sem falar do impacto da epidemia, um problema à escala mundial, na saúde mental dos portugueses.
Há cerca de quinze dias um artigo do jornal “Expresso” referia-se à tragédia económica portuguesa das últimas duas décadas, dizendo que o rendimento médio disponível das famílias em 1999 era superior ao de 2019. Prosseguia o artigo dizendo: “Duas décadas perdidas. Para ser preciso, depois de corrigido para a inflação, o rendimento das famílias caiu 6%. No mesmo período, o PIB per capita teve um aumento acumulado de 18%, menos de 1% ao ano. Portanto, aumentou qualquer coisa, mas não foi para as famílias. Pelo menos, não de uma forma que seja captada pelo inquérito ao emprego do INE. Em suma, não só o país está estagnado há duas décadas, como o pouco que cresce não contribui para uma melhoria do nível de vida das famílias.” O artigo prossegue, referindo que: “Até ao final dos anos 90, como tínhamos um crescimento assinalável, era possível que alguns abocanhassem um grande quinhão e, mesmo assim, que a generalidade da população visse o seu nível de vida melhorar. Com a estagnação em que vivemos neste século, nem isso."1
Caldas de Almeida, referindo-se ao impacto da última crise económica mundial, iniciada em 2008, afirmou que, em Portugal, os dados oficiais recolhidos apontavam para um aumento das perturbações depressivas e das perturbações de ansiedade, a partir de 2010, em todas as regiões de Portugal Continental, quer ao nível dos cuidados de saúde primários quer ao nível dos serviços de saúde mental especializados de adultos, traduzindo-se, a este nível, num aumento do número de consultas realizadas.
De acordo com a mesma fonte, vários estudos epidemiológicos realizados na última década (antes do covid) demonstraram que houve um aumento da utilização dos serviços nas zonas do País associadas a maior privação material e social e, entre os utentes dos serviços psiquiátricos, um aumento das tentativas de suicídio, particularmente entre as mulheres. Os suicídios consumados ocorreram sobretudo nos municípios do Sul, em particular nos rurais e entre homens, acentuando-se a tradicional assimetria do País nas dimensões urbano/rural, homem/mulher e riqueza/privação material. Também foi estudado o impacto da crise sobre a saúde mental de pessoas que tinham ficado desempregadas no contexto da crise económica e sobre o bem-estar mental dos filhos destas, tendo sido concluído que as consequências negativas do desemprego eram mais acentuadas nos homens que eram pais, e que essas se repercutiam nos filhos através da qualidade das relações familiares.
Em 2015 foram comparados os dados epidemiológicos sobre as perturbações mentais, antes e depois da referida crise económica e esses dados evidenciaram um aumento da prevalência de sofrimento psicológico em Portugal. Caldas de Almeida concluía dizendo que “a crise económica afetou diretamente aqueles que perderam o seu emprego e aqueles que viram deteriorar-se as suas condições de vida; no entanto, também pode ter indiretamente afetado aqueles que deles dependem, material e emocionalmente, como crianças e jovens” e salientando que “no futuro importa desenvolver estratégias abrangentes, visando melhorar a proteção social, diminuir as desigualdades de rendimento e mitigar os impactos do desemprego, de modo a proteger a exposição e a vulnerabilidade da população aos riscos para a saúde mental associados às crises económicas.”2
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O País tem estado suspenso desde que a pandemia chegou a Portugal, há cerca de um ano. O número de consultas, de recursos aos serviços de urgência e de internamentos psiquiátricos diminuiu entretanto, desde que o País foi varrido pela onda de medo que a epidemia causou. Até as queixas de violência doméstica diminuíram. Não nos iludamos porém: com o aumento do desemprego, o fim das moratórias e a diminuição da riqueza das famílias, as condições de vida dos sobreviventes vão piorar, os jovens vão estar mais mal preparados para enfrentar um mercado global e a saúde mental dos portugueses vai deteriorar-se na próxima década.
Até que ponto estamos familiarizados com a ideia de que a conflituosidade familiar, a violência doméstica e as tentativas de suicídio - mais comuns sobre e nas mulheres -, as perturbações do comportamento e as dificuldades de aprendizagem dos nossos jovens e o aumento do consumo de tóxicos e das perturbações mentais a ele associados, se relacionam com as varáveis sociais e económicas atrás descritas, que se deterioraram em consequência da epidemia? Temos consciência que as condições de vida contribuem mais para a saúde, e consequentemente para a saúde mental de uma população, do que o desenvolvimento tecnológico dos meios de diagnóstico e de tratamento das doenças, e das doenças psiquiátricas, em particular?
Uma vez controlada a epidemia, os serviços de saúde mental do SNS vão ser confrontados com o enorme desafio de dar resposta às necessidades emergentes que, em saúde mental, não se manifestam de imediato, mas se alimentam do isolamento, da solidão e do sofrimento vivido em silêncio, que o confinamento obrigatório veio acentuar e de que há um ano atrás, de forma coletiva, parecia não queremos dar-nos conta. Leia a este propósito, o texto escrito por nós em junho de 2020, no seguinte link:
https://www.saudementalxxi.pt/pt/blog/a-pandemia-e-o-medo
1. Luís Aguiar-Conraria (2021, 26 de março). No Zimbabwe, chamam-lhe ganhar a lotaria. Expresso, p. 33.
2. José Miguel Caldas de Almeida (2018). A saúde mental dos portugueses. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.