O seu fim, tal como o seu nascimento, situava-se num tempo mítico.1
Esta crónica é dedicada à jovem Mariana, que perdeu a mãe no final de Janeiro; na véspera do seu aniversario, o dia do ano de que mais gosta. A mãe da minha paciente faleceu de demência, mas ainda não era idosa. Sofria de uma forma de doença, a demência fronto-temporal (DFT), que se caracteriza por alterações dramáticas do comportamento e do discurso e que atinge pessoas com menos de 65 anos de idade. Em pouco mais de dois anos, e não muito longe da previsão que o neurologista fizera, a mãe da minha doente foi perdendo progressivamente autonomia, até que deixou de andar, de falar, de se alimentar e de reconhecer a filha.
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A DFT é uma doença degenerativa do cérebro que se costuma instalar lentamente e que possui várias apresentações clínicas. A apresentação que é dominada por alterações comportamentais, em que habitualmente há uma atrofia das regiões frontal e temporal do hemisfério cerebral direito, é caracterizada por mudanças do comportamento social, sendo comuns a perda do juízo crítico, a desinibição, a rigidez do pensamento, a apatia e o embotamento afetivo; este conjunto de manifestações confunde-se amiúde com algumas doenças psiquiátricas, nomeadamente com a doença bipolar, a depressão e até com algumas perturbações de personalidade. Esta forma de demência caracteriza-se por alterações precoces da personalidade (desinibição, comportamento compulsivo, inércia, apatia e falta de empatia), mudanças de conduta (por exemplo, utilização impulsiva dos objetos, alterações na dieta e hiperoralidade compulsiva, isto é exploração de objetos com a boca), defeito da linguagem (discurso de baixo débito e volume, com perda da musicalidade e dificuldades de nomeação, que depois evolui para mutismo) e ainda por alterações dos movimentos (com aparecimento de reflexos neurológicos primitivos e depois com manifestações extra-piramidais, idênticas às da doença de Parkinson).2,3
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A Mariana foi convivendo com as manifestações de doença da mãe de diferentes formas. Durante a maior parte da sua vida, a relação entre as duas foi tumultuosa, sendo a Mariana arrebatada por frequentes acessos de cólera, que coexistiam com um profundo desejo de corresponder às expectativas da mãe e de ser amada por ela. Depois do diagnóstico de DFT, a Mariana mostrou-se frequentemente triste, “adotou” os pais do namorado, para casa dos quais “se mudou” e passou a aproveitar melhor as oportunidades de encontro com a mãe, procurando que fossem agradáveis para ambas. Depois quis casar, para que a mãe ainda pudesse participar conscientemente no seu casamento. À medida que ela se tornava mais dependente, a Mariana demonstrou como isso lhe era penoso de múltiplas e variadas maneiras. Quando a morte da mãe foi anunciada, a Mariana agiu de forma impulsiva e destemida. A notícia da sua morte deixou-a incrédula e de seguida muito inquieta, de resto como todas as separações anteriores que experimentara. Agora, progressivamente, vai começando a conviver com a sua dor e vai-se deixando amadurecer por ela: experimenta até um sentimento de culpa, por causa do comportamento truculento que teve outrora.
É pensando na fase do luto pela qual a minha doente está a passar (aceitação), que reforço a importância do tempo; tempo para que os familiares se possam despedir dos seus entes queridos.
Uma doença crónica e letal traz grande sofrimento para o próprio e para os seus familiares, mas também permite que haja uma adaptação, progressiva, à perda antecipada:"retirámos daquele adiamento um benefício evidente: salvou-nos – ou quase – do remorso. Quando alguém que nos é querido desaparece, pagamos com mil remorsos dilacerantes o sentimento de culpa por lhe sobrevivermos. A sua morte revela-nos a sua singularidade única; torna-se do tamanho do mundo que desaparece com a sua ausência, que a sua presença fazia existir; parece-nos que o ente querido deveria ter ocupado mais espaço na nossa vida; no limite, todo o espaço. Tentamos libertar-nos desse abismo: era só um indivíduo entre tantos outros. Mas como nunca fazemos por ninguém tudo o que poderíamos - mesmo dentro dos limites, discutíveis, que fixámos - resta-nos ainda censurarmo-nos por muitas razões." 1
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Esta noite sonhei com a mãe da Mariana. "Sonhei que uma mulher entrava no quarto com uma menina nos braços (...) A mulher disse-me: Ela mastiga à maluca, sem ligar, sem desligar." 4
1. Simone de Beauvoir (2008). Uma morte suave. Lisboa: Cotovia.
2. Guimarães J., Fonseca R., Garrett C. Demência fronto-temporal. Acta Med Port. 2006; 19: 319-324
3. Olney NT, Spina S, Miller BL. Frontotemporal Dementia. Neurol Clin. 2017 May; 35 (2):339-374
4. Gabriel García Márquez (1987). Crónica de uma morte anunciada (4ª edição). Lisboa: Edições “O Jornal”. Tradução de Fernando Assis Pacheco.