Quando M.A.L. me consultou não foi para me falar da doença que a consumia silenciosamente, sem alarde. Era uma mulher discreta, que tinha ultrapassado há muito a esquina dos cinquenta. De estatura média e cabelo grisalho, apresentou-se-me de forma simples. Vinha falar-me da “outra bomba atómica que lhe caíra em cima”: a infidelidade do marido. Na altura, disse-me: “Com o cancro, lido eu. O meu problema, é o meu marido!”
Apesar de só há poucos meses ter descoberto que o marido a traía com uma colega de trabalho, M.A.L. possuía todos os estigmas da mulher que é ou virá a ser traída: era generosa e transparente, honesta acerca de si, mais do que em relação aos outros, para os quais reservava uma medida maior. Assegurara cuidados aos familiares (do marido), chamava a si a gestão de todos os assuntos domésticos e tinha sido uma boa professora. Essa tinha sido a profissão que abraçara, numa época em que o marido não terminara ainda a sua formação académica. A sua família de origem já toda havia desaparecido.
Os médicos e os restantes técnicos que acompanhavam M.A.L. no hospital criam, ingenuamente, que a doença tinha sido erradicada através do tratamento. Nessa expectativa também ela viveu os meses de Verão, durante os quais se afastou da minha consulta, adiando-a por várias vezes...
Quando M.A.L. voltou à minha consulta era Dezembro. Enquanto permanecera afastada, o marido tentara uma reconciliação e ela quisera acreditar nele, por isso se afastara da minha perspectiva menos idealizada da natureza humana... Vinha agora ainda mais desiludida - já divorciada. Mas consigo trazia também queixas de falta de apetite, náuseas e alterações das fezes e da urina...
Soube da sua morte por acaso, através de uma amiga que trabalha na mesma escola onde M.A.L e o seu marido trabalhavam. Tinha morrido a poucos dias do Natal - para quê esperar pelo nascimento de Jesus, se já não tinha família para o comemorar?!
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Este caso clínico ilustra bem o processo descrito por Susana Moreira Marques. É dessa maneira que imagino o processo que, um dia, foi posto em marcha no caso da minha doente M.A.L., que morreu devido a um cancro da mama.
Sei que, certo dia, surgiu no organismo de M.A.L. uma ferida e que esta, em vez de sarar, utilizou o processo normal de reparação das feridas (a inflamação) para se expandir, invadir o seu organismo e o levar à destruição. Deduzo que as células do seu sistema imunitário foram enganadas e utilizadas em benefício das células cancerosas (tapando os olhos à circulação do inimigo), que estas passaram a infiltrar os tecidos vizinhos, penetrando na corrente sanguínea, migrando e estabelecendo colónias remotas de células, as metástases.2
Um cancro bem-sucedido é aquele que provoca uma intensa reacção inflamatória local.2 No caso de M.A.L, falo do cancro, mas também do seu marido, que repetidamente a ludibriou nos meses que decorreram entre a descoberta da doença e a sua morte.
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O acompanhamento do caso de M.A.L terminou com uma última conversa. Com a sua filha. E é pensando na filha dela que cito este outro livro, escrito por uma outra mulher:
A sua mãe sofrera em vida todos os sintomas de ter sido traída, e só depois de ter morrido, e de todos os protestos da sua memória terem expirado, é que Fay ali aportou, vinda de Madrid, Texas. Talvez tenha sido só nesse momento tardio que o seu pai sonhou ter uma Fay. Porque Fay era o terror de Beckey. O que Becky pressentira, e temera, para ela pode ter existido sempre, precisamente aqui em casa. O passado e o futuro podem ter trocado de lugar, em qualquer convulsão da mente, mas isso em nada contribuiria para refutar a verdade do coração. Fay podia ter aqui entrado mais cedo ou mais tarde, podia ter vindo em qualquer altura. Mas viria.3
Nem sempre temos tempo para viver tudo aquilo que a vida nos promete. Às vezes, o nosso fim é precipitado pela acção humana. Contar a história de M.A.L. é a minha maneira de mitigar a injustiça da sua morte prematura.
Em memória de M.A.L
1. Susana Moreira Marques (2013). Agora e na hora da nossa morte, Lisboa: Edições Tinta da China.
2. David Servan-Schreiber (2012). Anti-cancro - uma nova maneira de viver (8ª Ed.). Alfragide: Editora Lua de Papel.
3. Eudora Welty (2012). A Filha do Optimista, Lisboa: Relógio D’Água Editora.