sinónimo de liberdade intelectual, vivência de intimidade e, simultaneamente, modo de relaxamento – uma maneira de me conectar com o meu Eu mais profundo, a que habitualmente poucos, muito poucos, têm acesso. No exterior, a minha vida profissional decorria, paralelamente, e não havia perigo, julgava eu, de se cruzarem – a minha vida interior e o meu Eu social – já que duas paralelas nunca se cruzam, sabemos disso desde crianças.
Com a epidemia, em vez de ficar fechada, voltei a sair (viajando em auto-estradas quase desertas), a ir ao hospital (estranhamente vazio), a fazer compras nos supermercados mais próximos de casa (com vizinhos a conta-gotas). As pessoas desapareceram do espaço público e o mundo desacelerou. Por ambas as razões, surgiu finalmente a oportunidade de criar um website profissional, que fazia sentido uma vez que sentia necessidade de voltar a ser vista. A ideia do blogue, como parte integrante do site, surgiu naturalmente, uma vez que sempre fui escrevendo, ao longo dos anos: de forma descontínua e dispersa, e basicamente para mim mesma.
Com o blogue, todas as ideias que povoam habitualmente a minha cabeça encontraram, finalmente, uma forma de expressão e um meio de difusão, alheios à necessidade de anuência, ou reconhecimento, dos superiores e dos pares.
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Ótimos livros são aqueles bons livros que se leem na altura certa. Há dias, deparei-me com o reflexo do que se passava comigo até 2020, no “Admirável Mundo Novo”: “Penso numa sensação estranha que algumas vezes sinto, a sensação de ter alguma coisa de importante a dizer e o poder de a exprimir, mas sem saber o quê e sem poder fazer uso desse poder.” 1
O blogue tem-me permitido escrever acerca de situações da vida real. Muitas delas passadas com os doentes, ou passadas comigo, no meu trabalho com eles; casos em que o sofrimento das pessoas é palpável, ainda que nem sempre de fácil compreensão.
Quem se der ao trabalho de ler este texto poderá pensar que há muitos livros (talvez em demasia) e muito bons escritores (alguns), e que é uma presunção da minha parte fazer referência a eles, como se lhes pudesse comparar em virtuosismo. Não é essa a minha intenção (ainda que fosse esse o meu desejo). Procuro ser contundente a escrever, como o sou, às vezes, naquilo que devolvo aos pacientes e, se cito os autores que admiro, é porque lhes quero prestar justa homenagem, uma vez que ando há tantos anos a conviver com eles e eles me têm dado uma ajuda tão preciosa na tentativa de compreender o mundo que me rodeia. Partindo do ponto de vista microscópico, porque individual, que é o de quem vem da área das ciências exatas, faço sucessivas aproximações ao mundo real, macroscópico, da sociedade em que vivo. Dizia ainda Helmholtz Watson, no “Admirável Mundo Novo”: “Se houvesse alguma outra maneira de escrever (...) Sabe, sou bastante hábil na invenção de frases... de palavras de natureza tal que o fazem subitamente sobressaltar, compreende?, como se se tivesse sentado num alfinete, (...) Mas isso não me parece suficiente. Não chega que as frases sejam boas: o que se faz com elas deve também ser bom. (...) As palavras podem ser semelhantes aos raios X: se delas nos servirmos convenientemente, atravessam tudo.” 1
Sinto-me frequentemente grata por poder usar as palavras de forma útil e por ver o resultado direto do seu uso no meu dia a dia. Ser psiquiatra é muito mais do que fazer diagnósticos e dar tratamentos; o resultado destes é muito diferente, consoante as palavras que os envolvem e embrulham. Por outro lado, fico satisfeita por participar na vida das pessoas comuns, tais como são os pacientes que acompanho. E isso faz-me pensar naqueles que estão há anos isolados na catedral dourada do mundo académico, a dezenas de metros de distância do mundo real. Alice Kelleher, uma espécie de alter ego de Sally Rooney, diz no “Mundo Belo”: “Já não consigo ler romances contemporâneos. Acho que é porque conheço demasiadas pessoas que os escrevem. (...) A verdade é que não têm noção nenhuma do que é a vida normal. A maioria deles há décadas que nem sequer vê o mundo real.” 2
1. Aldous Huxley (2013). Admirável Mundo Novo. Lisboa: Antígona.
2. Sally Rooney (2021). Mundo Belo, onde Estás. Lisboa: Relógio D’Água.