Abril, a liberdade e as Marias de Portugal

abr-2023

- Maria, quantos? - Dez anos. - Já dez anos! Então e agora?

Em Abril chegou de fora a notícia de que a criadora da minissaia, Mary Quant, tinha falecido, aos 93 aos de idade. Segundo percebi, a criação que marcou a libertação do corpo feminino no século XX está envolta em polémica: na época, a sua autoria foi disputada por dois outros costureiros, homens (talvez por ela não ter formação específica em estilismo, lhe tenham querido negar a originalidade).

Poder-se-á pensar que, uma vez que as saias das mulheres tinham vindo gradualmente a encurtar, desde os alvores do século (exigindo cada vez menor quantidade de tecido para a sua confeção), a invenção das saias (ultra)curtas não tenha sido assim tão original. O facto é que a minissaia precedeu o topless – ambos marcaram a segunda metade do século passado – e todas as discussões acerca do direito que as mulheres têm, ou não têm, de utilizarem o seu corpo (e, acrescentaria eu, a sua mente) como entenderem.

Em Portugal, durante Abril, precisamente o mês que assinala o direito à liberdade, multiplicaram-se as notícias sobre assédio e abuso sexual: na hierarquia religiosa (não exclusivamente católica), mas também académica. O assédio (sexual, moral), transpôs a barreira das empresas e, afinal, parece que anda por aí à solta (ou seja, por todo o lado). Dá-se o facto de, em comum, nos diversos contextos – empresarial, religioso ou académico – os homens serem, ainda, os principais detentores de poder (ou não fosse o caso de ocuparem o topo da hierarquia da maior parte das instituições), e por isso a esmagadora maioria dos assediadores (e abusadores).

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Abril foi também o mês em que o futuro do hospital de dia (HD) do HEM (que entretanto completou dez anos) foi alvo de polémica no Serviço de Psiquiatria. No fundo, pensar no que somos, uma vez aqui chegados, e decidir o que queremos vir a ser, definindo estratégias para podermos lá chegar. Atualmente, e de forma a definirmos qual a identidade do HD do HEM, procuramos resposta para as seguintes questões: que tipologias de HD de Psiquiatria existem? Que tipo de doentes tratam os diferentes HD do país? De que recursos dispõem, para fazerem o seu trabalho?

Para além dessa investigação, acerca dos meios e dos modos de trabalhar nos HD, ocupei-me de uma outra reflexão, esta mais pessoal, acerca do tipo de formação que considero importante dar aos futuros médicos especialistas, durante os seus seis meses de estágio no HD.

Encontro o reflexo da forma como concebo a formação dos internos de Psiquiatria em HD no ensaio de Cláudia Galhós, no qual ela diz, acerca do trabalho que Pina Bausch fazia com cada um dos seus bailarinos: “(...) os intérpretes são estimulados, por via de frases, imagens, ideias, excertos de livros, de filmes, de música (...) a criar uma correspondência (...) esta relação faz-se de forma normalmente intuitiva ou por associações livres e por sucessivas tentativas. (...) A peça acaba por ser, assim, criada numa dinâmica partilhada por vários elementos, fazendo com que os intérpretes deixem de ser meras marionetas e passem a envolver-se com toda a sua estrutura emocional, pessoal, criativa e intelectual (...) significando também que estes são considerados como pessoas com algo a dar, com personalidade própria.” 1

Ainda no mesmo livro, a crítica de artes performativas demonstra que não era pouco o que a coreógrafa fazia pelo bailarino: “É-lhe devolvida a capacidade de pensar, sentir, decidir e agir.”

A consequência desta forma de conceber o trabalho dos futuros especialistas (à semelhança do trabalho dos bailarinos) é que eles trabalham diretamente com todos os doentes que frequentam o HD, num contacto que é quase diário e, com alguns deles, frequentemente individual. Neste contacto regular, flexível e prolongado no tempo esbatem-se as defesas de ambos, paciente e médico; eles aproximam-se e passam a questionar-se mutuamente. É difícil não chamar a este tipo de trabalho psicoterapia; pelo menos, no sentido lato do termo.

Cláudia Galhós afirmou no seu ensaio biográfico acerca de Pina, que, no início, o trabalho da coreógrafa foi rejeitado efusivamente e que “se, (...) o que temos não é a criação de algo absolutamente novo, o que Pina Bausch faz é ainda mais extraordinário do que isso: é seguir os seus instintos.”

No mês em que se fala de liberdade - liberdade de pensamento e de expressão – pareceu-me paradoxal que alguns quisessem agrilhoar o trabalho feito no HD do HEM, ao definirem uma fronteira estanque entre o que é uma psicoterapia e todo um conjunto de técnicas que são diariamente praticadas com os doentes, e que vão muito para além da relativamente simples tarefa de lhes administrar medicamentos. Gosto de pensar que, do mesmo modo que o teatro-dança se expandiu com Pina Bausch, passando a incluir uma série de coisas que tradicionalmente não faziam parte da dança, o papel fundamental dos médicos no HD de Psiquiatria em que trabalho pode vir a ser, futuramente, mais reconhecido, valorizado e expandido, vencendo a resistência de alguns.

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O País é hoje, e mais do que antes, construído por homens e por mulheres. De entre estas, as incansáveis (as Marias de Portugal) demonstram aos homens que, além de laboriosas, conseguem ser criativas. Essas são as mais aptas de nós a poder contribuir para a construção de um melhor Portugal; mais democrático, mais inovador, mas também mais eficiente (que é como quem diz, conseguindo fazer saias com menos tecido). Não tenhamos porém dúvida de que as disputas entre mulheres alimentam o poder instituído pelos homens. E que, dessa maneira, paradoxalmente, as mulheres ajudam a manter o statu quo e potenciam os referidos abusos de poder.

1. Cláudia Galhós (2010). Pina Bausch – Sentir mais (Uma peça para Pina Bausch). Alfragide: Publicações D. Quixote.