O Dia da Mulher sempre me deixou uma sensação agridoce; surpreende-me ver como as outras mulheres ficam satisfeitas quando os seus amantes (namorados, maridos...) lhes oferecem ramos de flores e jantares. A mim, estes gestos lembram-me a caridade para com os pobres, pois se é verdade que a miséria é mitigada com tais gestos, é evidente que estes não a eliminam (também é inequívoco que, se não houver pobreza, não haverá lugar para a caridade e, desse modo, uma das várias formas de bondade não poderá expressar-se, neste mundo).
Comemora-se o Dia Internacional da Mulher porque continua a haver um abismo de diferenças entre nascer-se homem ou nascer-se mulher. É indiscutível que, mesmo no século XXI, as mulheres se confrontam com dificuldades que aos homens não faria qualquer sentido colocar ou, sequer, pensar em fazê-lo. Na família, no emprego, nos tempos de lazer, múltiplos são os exemplos que poderiam aqui ser apontados. Por isso, dar comida, flores e sexo às mulheres, pode diminuir a sua fome, mas não a sacia.
De qualquer modo, não é sobre isso que quero escrever, para assinalar o Dia da Mulher. Quero escrever acerca do abuso sexual, que se apresenta, ao contrário da violência física contra as mulheres, “ (...) de forma insidiosa e tortuosa, sem que tenhamos claramente consciência dele.” 1
Para isso vou partir do livro que foi publicado pela primeira vez, em Portugal, em Setembro de 2020 e que se chama Consentimento. Este foi o primeiro livro da autora, Vanessa Springora, uma francesa que trabalha como editora, em Paris. O livro está dividido em seis partes e acompanha cronologicamente a vida da autora, desde criança até mulher. Até ela se sentir capaz de escrever acerca da sua experiência singular, ou melhor, até se tornar mulher e, só então, ser capaz de publicar o seu testemunho. Trata-se de um relato, por vezes cru, acerca da experiência de se tornar objeto sexual de um adulto, na adolescência. Tornar-se uma presa, como refere a autora. E de o ser para um outro escritor, o caçador, que ela designa pela inicial do nome próprio, G., ao longo de todo o livro; caçador que ela tenciona apanhar na sua própria armadilha, o livro.
No caso descrito, o pai da menina é omisso. A mãe, emancipada, responsabiliza depois a adolescente pelas escolhas que fez, desde os 14 anos, demitindo-se do seu papel de protetora e educadora da filha; quando, aos 16 anos, ela se muda para casa dos pais do namorado (que a ajuda a libertar-se das garras do amante), a mãe, mais uma vez, não levanta qualquer resistência. Depois de deixar este namorado, conhece outro rapaz: “uma pessoa que, tal como eu, sofre em silêncio, e encontrou, como único remédio para afugentar o seu spleen, os paraísos artificiais. Imito-o.” A mulher remata a sua história admitindo que “desde então conheci muitos homens.”
A autora assinala a vulnerabilidade das vítimas, pressentida pelos abusadores. Vulnerabilidade associada ao escasso entendimento do jovem e vulnerabilidade pela fragilidade física inerente à tenra idade; ambas potenciadas pela negligência da família, que ignora, nega, desvaloriza ou consente o abuso. Vulnerabilidade que se perpetua na dificuldade de, depois do sucedido, os próprios se reconhecerem como vítimas: “E, de facto, como admitir que fomos abusados, quando não podemos negar que consentimos? Quando, por exemplo, sentimos desejo pelo adulto que se apressou a aproveitar-se disso?”
Vanessa Springora salienta o impacto do confronto precoce com a sexualidade dos adultos, a marca que permanece nas vítimas durante anos e que, no seu caso, só conseguiu ultrapassar através de tratamento especializado, longo e profundo (após um breve internamento psiquiátrico, empreendeu tratamento psicanalítico), porque “a intervalos de dois ou três anos, refaço a minha vida de fio a pavio. Mudo de amante e de amigos, de profissão, de estilo de roupa, de cor de cabelo, de maneira de falar, até de país mudo. (...) Não sei quem sou, nem o que quero.”
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Em muitos dos casos seguidos por profissionais de saúde mental, talvez mesmo na maioria dos casos, o confronto extemporâneo com a sexualidade adulta não se reveste das características daquilo a que tecnicamente se pode chamar abuso sexual. Pode tratar-se do simples toque, da exposição ou da manipulação dos genitais perante uma criança ou pode traduzir-se, por exemplo, num ou em vários encontros com exibicionistas, na adolescência. Nesses casos fala-se de assédio sexual. O encontro inesperado com a sexualidade dos adultos pode ser uma experiência traumática mesmo assim, sobretudo se repetida, pois confunde a vítima que, não tendo inicialmente previsto a experiência, é surpreendida pelo seu próprio desejo, se confronta com ele sem se ter preparado para tal e se sente culpada por isso. A experiência, ainda que menos traumática, pode deixar sintomas no seu rasto, uma vez chegada a idade adulta, quer na forma de afetos superficiais e comportamento sexualmente promíscuo quer na forma de queixas físicas inexplicadas ou exacerbadas, assim como na forma se obsessões e compulsões relacionadas com o sexo ou ainda na forma de sintomas depressivos crónicos.
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Mesmo que os ramos de flores e jantares facilitem uma maior intimidade, as mulheres do século XXI podem também querer matar as outras fomes que as afligem há séculos. Uma delas mitiga-se fazendo uso pleno da palavra.
Dedico esta crónica à Sandra. E também à Carla, à Isabel e à Maria e a todas aquelas mulheres que partilharam comigo as suas experiências precoces de confronto com a sexualidade adulta.
1. Vanessa Springora (2020). Consentimento. Lisboa: Alfaguara.