A mão que embala o doente

mar-2024

No dia 7 de Março fiz uma palestra sobre a promoção da saúde mental na escola.

Foi numa escola secundária de Lisboa, ao pé do consultório e calhou mesmo bem porque, simbolicamente, amplificou a minha voz, na altura em que se assinalava o dia internacional da mulher.

No final, um dos alunos juntou-se às meninas (que frequentemente esperam pelo final das aulas, para colocarem questões aos professores) e fez-me uma pergunta à qual achei que já tinha dado resposta: o rapaz queria perceber melhor o que distinguia um psiquiatra dum psicólogo. E, ainda que eu tivesse explicado antes, à plateia, as diferenças que ajudam a distinguir facilmente os dois (por serem tão evidentes que saltam à vista: o médico passa medicamentos, o psicólogo passa testes), ele insistiu, e só então percebi o que o confundia. Na verdade, ele tinha observado um psicólogo a entregar uma receita a um paciente e por isso mostrava-se incrédulo com a minha explicação de que os psicólogos não eram médicos e (por isso) não passavam remédios.

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Há anos (na verdade, no século passado) vi um filme de que nunca mais me esqueci, por destacar o quanto nos podemos enganar na avaliação das pessoas, ou do impacto das nossas ações nos outros.

No filme A Mão que Embala o Berço1 assistimos a um thriller psicológico, no qual uma mulher quer vingar-se de outra, por considerar que ela é responsável pela morte do seu marido (médico) e do filho de ambos. Depois desta tragédia pessoal, e para conseguir o seu intento, a mulher infiltra-se na família da outra que, tendo uma filha pequena e estando novamente grávida, procura uma baby-sitter. Pensando ter encontrado a pessoa ideal para cuidar das crianças, a grávida vê-se arrastada inesperadamente para uma luta pela sobrevivência, sua e da sua família.

As mais feministas de nós dirão porventura que o filme está datado, porque o realizador, sendo homem, colocou duas mulheres a competirem, uma com a outra, por inveja (do útero grávido). Os mais imaginativos, nascidos já neste século, poderão dizer que foi a atração inconsciente (de uma em relação à outra), que motivou o desejo de destruição (a ativação do instinto de morte), por não haver uma correspondência (de afeto). Os mais cândidos acharão que a primeira queria matar a segunda por ciúmes.

Sugiro que leiam o livro do psiquiatra – O Ciúme 2 – para compreenderem melhor a diferença entre sentir inveja, ser cioso ou ter ciúme, e recomendo que vejam (ou revejam) o filme, para o interpretarem da forma que mais vos convier (a arte não se explica, sente-se).

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A mim, no dia da palestra, veio-me à memória o filme, que nos convida a refletir sobre o quê e a quem confiamos aquilo que nos é mais precioso (seja a criança que está dentro do berço, seja o simples remédio que vai dentro da receita, e que se destina ao doente que nos procurou).

As receitas resultam exclusivamente do ato médico e por isso devem ser prescritas durante a consulta de Psiquiatria. E digo mais; em circunstância alguma, a responsabilidade de quem as emite deve ser transferida para outro profissional de saúde. Por isso, sugiro aos meus colegas (psiquiatras) que reflitam sobre as mãos que embalam os vossos doentes e dou-vos um conselho: evitem colocar nas mãos de intermediários, o que é central à nossa identidade e especificidade profissional.

1. Curtis Hanson (1992). A Mão que Embala o Berço.

2. Couto Soares Pacheco (1998). O Ciúme. Porto: Edições Afrontamento.